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sexta-feira, 3 de abril de 2020

de acordo com FERMIN ROLAND SCHRAMM (2010, p.190-191)

ouvindo: Anti-Flag, Kill Kill Kill, de 1995

“Desde meados dos anos 80 do século XX, costuma-se caracterizar a sociedade contemporânea como ‘sociedade de risco’[1] , ou, de forma mais específica, como “sociedade do risco mundial’[2] ou do ‘risco estrutural’[3] , mas que seria, também, uma sociedade de ‘perigo global’[2]. 
A sinonímia estabelecida entre as quatro expressões indica uma transição semântica: aquela de um estado potencial – o estado de ‘risco’ – para um estado atual – o estado de ‘perigo’ – e até um estado de ‘dano’, o que nos levaria a passar de atitudes meramente prudenciais para atitudes de medo e até de pânico, supostamente justificadas e que implicariam a instauração de um estado de exceção permanente[4].
Em particular, tal transição da potência ao ato na percepção da sociedade contemporânea seria supostamente justificada por representar um processo em curso, no qual a biotecnociência ou ‘paradigma biotecnocientífico[a]’ permitiria atingir ‘infinitos níveis’ ou ‘esferas do real’, o que nos obrigaria “a refletir sobre aquilo que significa ser humano’, visto que, ao atingir ‘a infinita estratificação do real’, ‘a própria estrutura daquilo que somos se vê posta em discussão’ e porque “a transformação da humanidade pelas tecnologias (...) ameaça não somente o humano, mas o ecossistema em geral’ (p. 11-3)[6]. 
Nesse tipo de percepção, o que estaria ocorrendo seria uma sinergia entre vários fatores do mundo tecnológico dito ‘globalizado’ – considerados ameaçadores –, sendo que a assim chamada ‘globalização’ – termo pelo qual se pretende indicar a nova condição existencial que diria respeito a todos e a cada um – seria o ‘destino irreversível do mundo, um processo (...) que nos afeta a todos na mesma medida e da mesma maneira” (p. 7)[7]. 
Assim sendo, pode-se dizer que a realidade “ameaçadora” do risco – tornado perigo e até ‘dano’ em certos casos clássicos conhecidos (como as catástrofes ambientais provocadas pelos humanos) – e as representações que a acompanham se referem, em níveis e graus comparáveis nas várias regiões do mundo contemporâneo, aos vários âmbitos da existência: a vida individual e a vida social; o ambiente em que tais vidas se situam e com o qual interagem; os meios simbólicos e biotecnológicos que transformam tais existências, de acordo com as potencialidades intrínsecas do ‘paradigma biotecnocientífico’. 
Mas, junto com esse mundo dos ‘riscos’, que se torna indistinguível daquele dos ‘perigos’ e dos ‘danos’, devido à subsunção dos primeiros aos segundos, e que várias disciplinas tentam compreender e descrever em seus aspectos pertinentes e preocupantes, mas que vários movimentos sociais também tentam controlar e transformar de maneira a evitar que os riscos se tornem perigos e danos de facto; parece existir também, como acompanhante inquietante, um medo difuso e generalizado, que chamaremos de ‘medo globalizado’. Esse medo tem, provavelmente, suas boas razões para existir, visto que o risco/perigo/dano seria global e atual, mas que pode ser também instrumentalizado para justificar medidas de controle, dispositivosb biopolíticos e de exercício do ‘biopoder’ sobre os cidadãos, pois essa seria a resposta, supostamente mais adequada, para nos proteger a cada um e a todos contra riscos potenciais que seriam, de fato, perigos e danos em ato. 
Mas, junto ao fenômeno da globalização – e do poder do medo que o acompanha – surgem também, e paradoxalmente, reações de desconfiança perante possíveis malefícios da biotecnociência, inseparáveis dos supostos benefícios, como estariam mostrando os movimentos sociais antiglobalização, por um lado, e o ressurgimento de interesse na temática da biopolítica e do biopoder, por outro. ‘Paradoxalmente’, porque a biotecnociência constitui, em princípio, um remédio contra ameaças e perigos, haja vista a função pragmática da ciência e da técnica, que consiste em resolver problemas e não somente entendê-los, tendo em conta algo como uma “otimização” da relação entre meios e fins, e, também, uma minimização dos possíveis efeitos adversos implícitos neste pharmakon, a começar por aqueles que atingem a condição humana, suscetível de se tornar ‘inumana’, devido aos cenários apocalípticos de servidão e escravidão do humano que a biotecnociência tornaria possíveis e que justificaria este ‘espanto tecnológico’[6]. Em particular, essa nova forma de competência, ao mesmo tempo simbólica, técnica, poiética e prática, estaria, por exemplo, reduzindo a diversidade biológica e, portanto, as possibilidades de autopoiese dos sistemas vivos, embora ela permita, também, criar novas formas de vida, supostamente mais adaptadas a um meio em transformação devido à atividade humana e às possíveis ‘reações’ do planeta Terra. 
Assim sendo, o grande dispositivo, multifacetado e complexo, representado pela biotecnociência, é visto, em muitos casos, não tanto como algo positivo, ou libertador da condição humana de ‘vulnerabilidade’ e de desamparo, ao serviço do bem-estar humano, mas como ameaça e perigo. Esse seria o verdadeiro sentido, ambivalente, da biotecnociência, inclusive da sua vertente chamada pesquisa científica, quando nessa existiria uma ‘dissociação entre pesquisa que envolve seres humanos e saúde pública’, ou quando os pesquisadores são cooptados pela indústria como meros executores ao serviço de interesses que não são necessariamente aqueles da sociedade[11]. 
Entretanto, existe, também, uma corrente que considera a vigência do paradigma biotecnocientífico e seus dispositivos como algo positivo, com possibilidades imensas de transformação da Terra e de seus seres, inclusive criando novos seres vivos e novas condições de existência, mais adaptadas à globalização dos problemas e as suas soluções. Esse é o caso de quem pensa que a ‘segunda natureza’, constituída pelas construções humanas, possa transformar a ‘primeira natureza’ de acordo com os projetos de bem-estar e de qualidade de vida, pois a reforma do humano por ele mesmo seria um processo evolutivo necessário e irreversível, e não uma mera possibilidade contingente do agir. Em suma, seria dele que dependeria a própria sobrevivência da espécie humana e a qualidade de vida no planeta Terra. 
É nessa bipolaridade das percepções da biotecnociência que surge a emoção chamada ‘medo’, vinculada a situações de riscos e de perigos, praticamente indistinguíveis. Tal medo tem graus de intensidade diferentes, que vão desde inquietações resultantes da percepção de um perigo real – com uma função em princípio adaptativa – até manifestações como fobias e pânico, que dependem de percepções de perigos e danos imaginários, que não remetem a nenhum conjunto de fatos objetivos e constatáveis. 
Devido a essa bipolaridade da percepção da biotecnociência, coloca-se a questão do sentido e das possibilidades trazidas pela vigência do paradigma biotecnocientífico e de seu eventual controle normativo legítimo pelo paradigma bioético, que, frente a tais possibilidades, deve se perguntar se tal vigência é algo desejável e legítimo ou não; e, se for considerado desejável, desejável por quem, para quem e para o quê.”
– SCHRAMM, Fermin Roland. Existem boas razões para se temer a biotecnociência. IN: Revista Bioethnicos - Centro Universitário São Camilo - 2010;4(2):189-197. clique AQUI para ler o texto na íntegra!

a. Por biotecnociência entendemos ‘[o] conjunto de ferramentas teóricas, técnicas, industriais e institucionais que visam entender e transformar seres e processos vivos, de acordo com necessidades e/desejos de saúde [e] visando a um genérico bem-estar de indivíduos e populações humanas’ (p. 21)[5]. 
b. O termo ‘dispositivo’ foi inicialmente introduzido por Deleuze, Guattari[8], retomado e teorizado por Foucault com o sentido amplo e polissêmico de operadores materiais e discursivos de poder, instituições e medidas administrativas, enunciados científicos e formas de subjetivação[9]. De acordo com a interpretação recente de Giorgio Agamben, um ‘dispositivo’ é um instrumento de poder que tem ‘a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres vivos’ (p. 22)[10].

1. Beck U. Risikogesellschaft. Auf dem Weg eine andere Moderne. Frankfurt am Main: Suhrkamp; 1986. 
2. Beck U. Was is Globalisierung? Irrtümer des Globalismus – Antworten auf Globalisierung. Frankfurt am Main: Suhrkamp; 1997. 
3. Schramm FR. Bioética e biossegurança. In: Costa SIF, et al, organizadores. Iniciação à bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina; 1998. p. 217-30. 
4. Agamben G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo; 2004. 
5. Schramm FR. A moralidade da biotecnociência: a bioética da proteção pode dar conta do impacto real e potencial das biotecnologias sobre a vida e/ou a qualidade de vida das pessoas humanas? In: Schramm FR, et al, organizadores. Bioética, riscos e proteção. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ / Editora da Fiocruz; 2005. p. 15-28. 
6. Dyens O. La condition inhumaine. Paris: Flammarion; 2008. 
7. Baumann Z. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1999. 
8. Deleuze G, Guattari F. L´Anti-Oedipe. Capitalisme et schizophrénie. Paris: Minuit; 1972. 
9. Foucault M. Histoire de la sexualité 1. La volonté de savoir. Paris: Gallimard; 1976. 
10. Agamben G. Che cos´è un dispositivo? Roma: Nottetempo; 2006. 
11. Schramm FR. ¿Congruencia o disociación entre investigación que involucra seres humanos y salud pública? Perspect Eticas. 2007;19: 43-63.

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