ouvindo: Javier Díez-Ena And His Theremins, Theremonial 2 (More Dark & Exotic And Danceable Theremin Music, de 2019.
hiato de novo, né isso ai hiato de novo todo dia sempre tenho alguma merda nova pra comentar por aqui mas acabo não comentando por motivos que não sei os motivos ai ontem, antes de faltar energia por quase toda a madrugada, achei no Tralhas Várias a HQ A Casa, do espanhol Paco Roca. e, lá pela metade, “porra, vou comentar esse texto amanhã”. ao contrário do Cruz del Sur, da dupla Luis Durán / Raquel Alzate[1], A Casa é bem mais bem mais bem mais pros nossos tempos.
dois textos que me fizeram ter uma perspectiva, no mínimo, assaz interessante sobre A Casa. o primeiro é o A memória, a história, o esquecimento, do filósofo francês Jean Paul Gustave Ricœur (1913-2005). o segundo é o artigo Amnésia e Anistia: reflexões sobre o esquecimento e o perdão, da professora húngaro-estadunidense Susan Rubin Suleiman, que, no meu entender, (ironicamente) se volta ao texto que falei de Herr Professor Ricoeur. mas vou falar deles lá pra frente.
é sabido, PORÉM CONVENIENTEMENTE IGNORADO que Brasil e América Latina, mesmo com inúmeras tradições advindas similares a dos europeus – e australianos e estadunidenses – NÃO SÃO CONSIDERADOS OCIDENTE[2] por não estarem nos mesmos níveis de “desenvolvimento”, “democracia” e “cultura” europeias[3][4]. sim, mesmo com o caso particular JAPÃO. mesmo o quão tais “potências ocidentais” tenham metido o bedelho no desenvolvimento e democracias emergentes a ponto delas não “estarem no ‘padrão europeu’ de ‘democracia’”. e mesmo que dois baluartes do Ocidente tenham passado por ditaduras militares[5]: Espanha e Portugal. como todo mundo sabe, houve uma época do Brasil antes de ser Brasil que era metade da Espanha e metade de Portugal e uma coisa atemporal que existe nos três países em questão é a boa, a velha a fedorenta e a puta que pariu TRETA DE FAMÍLIA. se tua família não tem treta em pelo menos algum grau, pode crer que ela não é normal, deu errado, é disfuncional, “volta que deu merda” e não poderia ser diferente com Antonio e Amparo Gisbert, e seus três filhos (nesta ordem), Vicente, José (alter-ego de Paco) e Carla. Vicente é casado e, com ela, são pais de Juan – que tem um celular[6] colado às mãos. José é marido de Silvia. Carla é casada e, com ele, são pais de Elena em momento algum se diz os nomes dos cônjuges de Carla e Vicente não são ditos em momento algum da narrativa.
apesar de em A Casa, Vicente, José e Carla falem de sua relação com Antonio, tanto por suas características de personalidade, quanto por precisarem vender a casa a qual ele se empenhou tanto para manter sempre bonita e arrumada. claro que os três não se limitam a tratar apenas do pai e das memórias de infância, mas também da relação entre eles – yeah, sim, em menor grau. contudo, é importante pegar esse fio, porque dialoga com a relação deles e Antonio.
pouco se diz sobre Amparo Gisbert (tanto que ela aparecesse pouquíssimo na história), visto que ela morrera antes de Antonio, somente o quão ela diferia do esposo, que não aguentava ficar parado, SEMPRE procurando algo para fazer na casa e sempre ordenando os filhos que o ajudassem logo, o caso dos três para reparar o imóvel e vendê-lo, uma vez que suas ocupações impossibilitam ficar com ele, por mais que suas vontades e corações insistam para fazê-lo.
eu falei de “narrativa”, né?
uma narrativa, a saber, tem como elementos enredo, tempo, espaço, ambiente, personagens e narrador. ainda que o tempo seja linear, ainda que contendo muitos flashbacks, Roca brinca com os demais constituintes narrativos, forçando ao leitor partilhar sua atenção para pegar os nuances da história.
NUM PRIMEIRO MOMENTO, é de se pensar que a casa não passa somente do ambiente onde a narrativa se desenvolve e a família Gisbert seja protagonista. PORÉM, numa leitura mais atenciosa, vê-se que a casa e a família Gisbert sejam tanto personagens quanto narradores do texto em questão, visto que ela se torna o centro das atenções e local de reunião de Vicente, José e Carla. os fatos sobre tempo, espaço, personagem e narrador a ser questionados em A Casa são:
- “onde (e quando) a personagem Vicente termina e começa a personagem Casa?”
- “onde (e quando) a personagem José termina e começa a personagem Casa?”
- “onde (e quando) a personagem Carla termina e começa a personagem Casa?”
- “onde (e quando) a personagem Casa termina e começa a personagem Vicente?”
- “onde (e quando) a personagem Casa termina e começa a personagem José?”
- “onde (e quando) a personagem Casa termina e começa a personagem Carla?”
- “onde (e quando) há a personagem Casa e a personagem Vicente, como uma só personagem?”
- “onde (e quando) há a personagem Casa e a personagem José, como uma só personagem?”
- “onde (e quando) há a personagem Casa e a personagem Carla, como uma só personagem?”
enquanto o Maranhão[7] meteu ficha a nível narrativo com seus Jogos Infantis, o Roca inserted coin e pressed Start em A Casa.
“‘tá, mas e o Ricœur e a Suleiman?”
sobre a fala do José Gisberto, enquanto Herr Professor Ricœur – em seu A memória, a história, o esquecimento – levanta as questões
- “o QUE esquecer?”
- “o que NÃO esquecer?”
- “por que esquecer?”
- “por que NÃO esquecer?”
- “QUEM esquecer?”
- “quem NÃO esquecer?”
em seu encalço, Frau Professorin Suleiman – em seu Amnésia e Anistia: reflexões sobre o esquecimento e o perdão – traz à baila as inquirições “QUEM perdoar?”, “quem NÃO perdoar?”, “o QUE perdoar?” e “o que NÃO perdoar?”.
o quadro acima demonstra que todas estas interrogações se fazem presentes em A Casa, visto que o trio de rebentos luta para que a memória do pai não desvaneça com a venda do imóvel, apesar de reprovarem muitos de seus comportamentos, e saberem que estas reprovações influem diretamente em como julgam uns aos outros a si mesmos simultaneamente. a consciência destes julgares e reprovações resulta em uma busca constante de perdão aos outros e si por estes atos e os três se confrontando e externando tais incômodos, concluindo que enquanto permanecerem vivos – e unidos –, a memória de Antonio e Amparo Gisbert não se extinguirá. ainda que Carla quisesse muito que Elena pudesse lembrar mais do avó.
ainda dentro d[est]a questão ricœur-suleimaniana, uma última crítica a tecer sobre A Casa é sobre o “perdoar” a Antonio e sua “mania de trabalho”. eu tinha lido em alguns textos anarquistas algo que a socióloga e professora brasileira Sabrina da Fonseca Borges Fernandes até comentou de uma só tacada em seu canal do YouTube sobre a alienação trabalhista violentamente difundida pelo capitalismo e vou sintetizar aqui com as minhas palavras o que li nos textos somado à fala da professora.
nos é ensinado desde tenra idade que “trabalho dignifica o homem”. mas ai a gente se pergunta “trabalho até quando?” “o quanto de trabalho?”. e vimos e vemos nossos pais e nossas mães não conseguirem ficar parados em casa, sempre procurando algo pra fazer e nos criticando por não estar fazendo o mesmo tanto que eles ai se torna um caralho de círculo vicioso de eles – nossos pais e nossas mães – serem assim porque seus pais viveram assim e a nós, geração atual[9], ser destinada tal vida.
“qual vida?”
trabalhar igual um jumento, não ter tempo pra porra nenhuma, adorar um feriado e cagar pra direitos trabalhistas porque não tem tempo pra pensar sobre eles porque se fode de trabalhar e não tem tempo pra pensar no que não lhe é conveniente. e acaba ensinando ao trabalhador que não lhe é conveniente discutir seus direitos básicos. onde eu quero chegar?
a pessoa trabalha muito durante a vida, praticamente só trabalha, pouco se diverte e só entende “trabalha muito” como “vida”, se incomodando com as que não são do mesmo feitio e querendo repassar a seus filhos e netos etc. etc. etc. vocês entenderam. e foi isso ai aconteceu que com o Gisbertão e acontece com muita gente – preferir morrer a não ter mais o que fazer e, consequentemente, se sentir inútil para si e, olha só!, para o mundo ignorando o fato de que já fizeram o suficiente pela sociedade. essa mesma alienação aqui descrita influiu diretamente na relação parental vista na HQ e não só em um momento que essa dicotomia é apresentada no texto e o trio se pergunta, nas entrelinhas, o quão isso fudeu a relação familiar gisbertiana. isso tudo remetendo às questões suleimanianas sobre perdão.
leia A Casa.
[1] comentado AQUI.
[2] pensem pelo lado bom, a África e a Rússia não são nem meio-termo.
[3] RODARTE, Leonardo. Você se considera ocidental? Para grande parte do mundo, o Brasil não faz parte do Ocidente. UOL Notícias. 24 de agosto de 2018.
[4] aspas propositais por motivos óbvios.
[5] ver nota [1] deste post aqui.
[6] “telemóvel” HUAHUAEUHAEUHAEUHAEUHAE
[7] Haroldo Lima Maranhão (1927-2004), escritor, jornalista e advogado brasileiro.
[8] nesse vídeo aqui ó.
[9] falo sobre a minha (1983) junta com a de todas até os nascidos em 1999, no mínimo.
R E F E R Ê N C I A S C O N S U L T A D A S
RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
RODARTE, Leonardo. Você se considera ocidental? Para grande parte do mundo, o Brasil não faz parte do Ocidente. UOL Notícias. 24 de agosto de 2018. Disponível em <https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2018/09/24/brasil-nao-e-pais-ocidental.htm>.
SULEIMAN, Susan Rubin. Amnésia e Anistia: reflexões sobre o esquecimento e o perdão. IN: SULEIMAN, Susan Rubin. Crises de Memória e a Segunda Guerra Mundial. Trad. Jacques Fux e Alcione Cunha da Silveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2019.
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