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domingo, 19 de maio de 2019

“Geralmente se supõe que a nossa Cultura, com sua ciência e sua tecnologia, opera medindo, prevendo e arregimentando um mundo de ‘forças’ naturais. Na realidade, porém, todo o nosso leque de controles convencionais, nosso ‘conhecimento’, nossa literatura sobre realizações científicas e artísticas, nosso arsenal de técnicas produtivas, são um conjunto de dispositivos para a invenção de um mundo natural e fenomênico. Ao assumir que apenas medimos, prevemos e arregimentamos esse mundo de situações, indivíduos e forças, mascaramos o fato de que o criamos. Em nossa crença convencional de que esse mensurar, prever e arregimentar é artificial, parte do domínio da manipulação humana e do ‘conhecimento’ e da Cultura cumulativos, herdados, precipitamos esse mundo fenomênico como parte do inato e do inevitável. O aspecto significativo dessa invenção, seu aspecto convencional, é que seus produtos precisam ser tomados muito seriamente, de modo que não se trate absolutamente de invenção, mas de realidade. Se o inventor mantém firmemente essa seriedade em mente (como uma ‘regra de segurança’, pelo menos) enquanto faz seu trabalho de medição, previsão ou arregimentação, a experiência da ‘natureza’ resultante irá sustentar suas próprias distinções convencionais. A invenção da natureza é séria para nós pela mesma razão que nossa invenção da Cultura precisa ser não séria, ou ‘engraçada’.
Como tantas outras coisas, nossa Cultura tecnológica precisa ‘falhar’ para ser bem-sucedida, pois suas próprias falhas constituem aquilo que ela está tentando medir, arregimentar ou prever. Se as fórmulas e previsões da ciência fossem completamente efetivas e exaustivas, se as operações da tecnologia fossem completamente eficientes, então a natureza se tornaria ela própria ciência e tecnologia. (É de fato assim que falamos das coisas em nosso mundo moderno de relatividade contextual: a natureza é ‘sistema’, é ‘biologia’ ou ‘ecologia’, enquanto a Cultura é ‘natural’, uma ‘adaptação evolutiva’.) A ciência e a tecnologia ‘produzem’ nossas distinções Culturais entre o inato e o artificial na medida em que falham em ser completamente exatas ou eficientes, precipitando uma imagem do ‘desconhecido’ e de forças naturais incontroláveis. É assim que ciência e tecnologia (por oposição à visão ‘interpretada’ que temos delas) se alinham ao conservadorismo nos Estados Unidos modernos. Mas se deve enfatizar que mesmo do ponto de vista tecnológico nossa Cultura ‘funciona’ em termos de objetificação e apenas incidentalmente em termos de energia e eficiência. 
A tecnologia é a sutil arte de combinar mecanismos complexos sobre os quais o ‘evento natural’ se impõe de maneira a sustentar o funcionamento deles. Seu planejamento e sua eficiência dependem de nossa capacidade de prever. Máquinas são Cultura, são controles convencionais concretos que simultaneamente objetificam os eventos fenomênicos impostos 
como ‘natureza Culturalizada’ (eletricidade, cavalo-vapor, ‘energia’, desempenho) e são por sua vez objetificados como ‘Cultura naturalizada’ (máquinas dotadas de capacidades, ‘poderosas’, ‘inteligentes’ e assim por diante). O que elas produzem em termos de ineficiência, fricção, inércia ou de ‘desconhecido’ é nossa palpável percepção da natureza como uma entidade que se opõe a nós. 
Consideremos a geração de ‘energia hidrelétrica’. Diz-se que a água que evapora pelos efeitos do sol e do ar e que se precipita de terrenos elevados possui uma certa quantidade de ‘energia’. Mas se essa força não é ‘arregimentada’ por meio da intervenção humana, permanece um potencial bruto; e se não é ‘computada’ por meio da aplicação de técnicas humanas e dispositivos de medição, seu potencial permanece desconhecido. Seja como potencial ou como atualização, a energia precisa ser criada mediante a seleção dos dispositivos de medição ou conversão Cultural apropriados para que o evento natural se imponha. Esses dispositivos objetificam o evento como ‘poder’ ou ‘energia’ de uma maneira ou de outra.
Mas essa invenção da natureza como ‘poder’ (a energia utilizável da eletricidade, a energia "desperdiçada" da inércia e da fricção) jamais ocorreria se os seres humanos já não tivessem inventado os meios tecnológicos e culturais pelos quais a objetificação pudesse ser efetivada. Sem a matemática do volume e da velocidade ou a física do calor, da gravitação e da eletricidade, o potencial não poderia ser calculado. Sem a tecnologia da construção de barragens, das turbinas, dos geradores, dos transformadores e da transmissão de energia, o potencial não poderia ser atualizado. Todas essas técnicas e procedimentos são resultado da invenção humana, que confere à Cultura tecnológica características que são transferidas para a natureza no curso de sua objetificação. Adquirimos o hábito de enxergar os fenômenos naturais em termos de potencial energético, como recursos (do mesmo jeito que uma raposa olha para uma galinha), e tendemos a esquecer que os verdadeiros recursos são aqueles da invenção humana. Como parte da Cultura, a tecnologia é um meio de armazenar essa invenção, concentrando a criatividade coletiva de muitos milhares de pensadores e inventores na tarefa de objetificar a natureza que constitui nossas vidas cotidianas. A energia que extraímos da arregimentação das quedas-d’água, da combustão e da desintegração radioativa é aquela da criatividade humana, pois sem a invenção da Cultura que essa criatividade origina e encarna, a Cultura, por sua vez, não poderia ser usada para inventar a natureza. 
A tecnologia interpõe seus dispositivos de tal modo que a imposição do evento natural possa ser construída em termos de ‘forças’ que os governam. A ciência, do mesmo modo, introduz ‘sistema’ na natureza e depois se deleita em descobri-lo ali; ela imprime uma forma sistêmica aos fenômenos naturais, e uma inevitabilidade natural a suas teorias. Essa não é a visão convencional dessas atividades: fomos ensinados a compreender as ‘regularidades naturais’ que elas precipitam como inatas e eternas, como um ‘mundo físico’. A ciência e a tecnologia tampouco são os únicos meios de invenção que empregamos, e de modo algum os mais sutis e difundidos. Toda a nossa Cultura coletiva pode ser vista como um conjunto de controles (‘instrumentos’, como se diz) para esse fim, e todo o universo fenomênico natural, como o objeto e o produto da invenção. Exatamente como as ‘forças’ da natureza governam nossa tecnologia e as ‘leis’ da natureza validam nossas teorias, também os fenômenos naturais são sempre criados como algum tipo de força espontânea ou motivadora.”
– WAGNER, Roy. “Uma Mensagem Importante para Você sobre os Fazedores do Tempo”. IN: WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura. Trad. Marcela Coelho de Souza e Alexandre Morales. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

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