Por uma abordagem sensível do poema
Aleilton Fonseca
“A emoção não é burra, ela abre horizontes.”
Benedito Nunes
Os poetas escrevem poemas; os leitores os lêem. Diferentemente dos leitores comuns, os estudiosos de literatura abordam um poema ou um conjunto de poemas, em busca de produzir novos conhecimentos acerca de um texto, de um autor ou da poesia em geral. Para isso, ao longo de sua formação, adquirem instrumentos teóricos e metodológicos que lhes permitem fazer uma abordagem supostamente objetiva, coerente e eficaz. Trata-se de modelos de análise, geralmente construídos e propostos por teóricos acadêmicos, utilizados como ferramentas que permitem desmontar e dissecar os textos — analisá-los, classificá-los, enfim, estabelecer a sua análise. O analista geralmente aplica sobre o texto poético uma nomenclatura — as categorias analíticas — enfim, formula uma metalinguagem que se desdobra sobre o objeto (o poema torna-se um objeto de estudo), muitas vezes subsumindo-o, incorporando-o, tornando-o tributário da análise. De tal forma que, não raras vezes, o resultado causa estranhamento até aos próprios autores. Não foi à toa que Carlos Drummond de Andrade escreveu um longo poema com o objetivo de exorcizar as nomenclaturas analíticas que os vários teóricos de diversas vertentes lançam sobre o texto literário*. Nesse poema, intitulado Exorcismo, o poeta enumera os conceitos, concluindo cada sequência com o apelo crítico e irônico: “Libera nos, Domine”**.
EXORCISMO
Carlos Drummond de Andrade
Das relações entre topos e macrotopos
Do elemento suprassegmental
Libera nos, Domine
Da semia
Do sema, do semema, do semantema
Do lexema
Do classema, do mesma, do sentema
Libera nos, Domine
Da estruturação semêmica
Do idioleto e da pancronia científica
Da reliabilidade dos testes psicolingüísticos
Da análise computacional da estruturação silábica dos falares regionais
Libera nos, Domine
Do vocóide
Do vocóide nasal puro ou sem fechamento consonantal
Do vocóide baixo e do semivocálico homorgâmico
Libera nos, Domine
Da leitura sintagmática
Da leitura paradigmática do enunciado
Da linguagem fática
Da fatividade e da não fatividade na oração principal
Libera nos, Domine
Da organização categorial da língua
Da principalidade da língua no conjunto dos sistemas semiológicas
Da concretez das unidades no estatuto que dialetaliza a língua
Da ortolinguagem
Libera nos, Domine
Do programa epistemológico da obra
Do corte epistemológica e do corte dialógico
Do substrato acústico do culminador
Dos sistemas genitivamente afins
Libera nos, Domine
Da camada imagética
Do espaço heterotópico
Do glide vocálico
Libera nos, Domine
Da lingüística frástica e transfrástica
Do signo cinésico, do signo icônico e do signo gestual
Da clitização pronominal obrigatória
Da glossemática
Libera nos, Domine
Da estrutura exo-semântica da linguagem musical
Da totalidade sincrética do emissor
Da lingüística gerativo-transformacional
Do movimento transformacionalista
Libera nos, Domine
Das aparições de Chomsky, de Mehler, de Perchonock
De Saussure, Cassirer, Troubtzkoy, Althusser
De Zolkiewsky, Jakobson, Barthes, Derrida, Todorov
De Greimas, Fodor, Chao, Lacan et caterva
Libera nos, Domine
O poeta mineiro deixa transparecer que, submetido a essa “provação” conceitual, o poema, em si, como invenção de linguagem e experiência, sucumbe à análise, perde sua aura de mistério, sua magia, com suas metáforas e opacidades reveladas à exaustão, classificadas, dobradas ao entendimento objetivo, racional. Como diria Drummond, “um claro enigma que uma vez decifrado não resta mais nada”. Um grande estudioso como Antonio Candido não se furta a registrar o mal-estar do crítico sensível, diante dessa situação:
Não posso aproximar-me da poesia, como crítico, sem sentir um certo constrangimento. Por que, para fugir de uma certa crítica detestável de impressões vagas e de tiradas sem sentido, o crítico vai se esforçando por se exprimir em conceitos, que são o resultado de análises em que o seu esforço foi — por mais que não o quisesse — o de intelectualizar as emoções.
Submeter a poesia ao processo de expressão crítica é, de certo modo, sacrílego e perigoso. Sacrílego, na mesma medida em que o é a crítica musical intelectualizada; perigoso, na medida em que o crítico sacrifica boa parte da sua experiência poética — passada em regiões e em termos inefáveis — e se intromete pela do leitor adentro**.
Eis aí o paradoxo inevitável. O poema é um objeto da cultura e, como tal, deve ser estudado, analisado, esclarecido como procedimento, como linguagem e experiência transmutadas em versos, como forma artística. A experiência do texto poético constitui um conhecimento e, a rigor, não se deve ter medo da análise e da teoria***. Todavia parece que a relação objetiva — e até fria, estritamente metodológica — do analista com este objeto extremamente sensível merece uma reflexão.
Ao impor ao texto poético um método, uma teoria, de fora para dentro, o crítico não o estaria deformando em sua natureza poética strictu sensu? Não o estaria limitando, enquadrando-o numa forma — restringindo-o aos aspectos qualificáveis dentro de um esquema de entendimento dado de antemão? Outra questão: o analista, nessas condições, seria um leitor exemplar de poesia? Talvez não, se entendermos o poema não apenas como uma fórmula linguística desmontável, mas como texto insubmisso, desestruturador das convenções, único em sua invenção imagética. E mais: um poema é único em cada leitura, em cada recepção particular do leitor. O texto de poesia é muito mais do que uma equação de sentidos, muito mais do que sua camada intelectiva logicamente explicável. Ele é também experiência e afetividade humana condensadas em palavras, complexo imensurável, enigma cujo sentido pertence ao momento mesmo de sua concepção. As abordagens que primam pelo racional, explicam — não resta dúvida! — mas também limitam o universo do poema ao escopo teórico, restringem os seus sentidos aos parâmetros permitidos ou delimitados pelo modelo explicativo utilizado. De tal forma que, mudando-se o método, mudam-se os sentidos verificáveis e a cadeia demonstrativa aplicável ao texto. Ou seja, para cada tipo de análise, o poema é uma coisa diferente. Ele torna-se algo e faz sentido a partir dos pressupostos que lhe são aplicados. Mas, e o poema em si, em sua natureza íntima, o que é? É experiência, afetividade, sentimento pessoal e coletivo condensado em palavras. Trata-se de um discurso de exceção, para além do uso corrente da linguagem, carregado de afetividade, corrente energética que quer falar diretamente à dimensão afetiva do interlocutor, reflexivo, transitivo, figurativo do mundo e das experiências emotivas — seja no plano concreto, seja no plano do desejo ou das intenções.
Mas é possível enfrentar esse impasse. Para tanto, é preciso que o estudioso seja, antes de mais nada — e sobretudo! — um leitor sensível do poema. Que seja capaz de interagir com o texto segundo a sua natureza de discurso que busca sintonia e reciprocidade para com o domínio afetivo. Essa abertura proporcionará ao analista ampliar, sem abrir mão dos recursos de abordagem, o alcance de sua percepção, admitindo no estudo a substância de sua subjetividade, de sua experiência emotiva e de seu grau de sintonia afetiva para com o poema em consideração. O estudo do poema, portanto, escapa às rédeas do mero conceitualismo descritivo, sua abordagem deixa de ser pretensamente científica e passa a ser uma abordagem sensível, performance textual que se inscreve no campo da própria literatura.
A abordagem sensível do poema é aquela que atribui ao texto literário — e não à teoria e seu método — o lugar privilegiado. Nesse caminho, o conhecimento anterior é uma base, pois os sentidos se originam no poema e para ele convergem, soberano em sua conformação lingüística, semântica e contextual. Com isso, o discurso-guia da teoria, o discurso-praxis do pesquisador e o discurso-arte do poeta ficam livres para um diálogo sensível, sem subordinações, nem preconceitos. Trata-se de uma experiência em que a análise configura os sentidos presentificados pelo poema, considerando também os seus efeitos nos sentimentos do pesquisador.
A abordagem sensível configura seu método e sua teoria no processo em si, pois eles são intuídos e percebidos a partir do próprio campo de sentidos acionado pelo texto estudado. O pesquisador torna-se, dessa forma, um intérprete integral do poema. Sua percepção e sua consciência não são subordinadas a pressupostos e preconceitos — que, muitas vezes, levam à visão distorcida ou equívoca de um texto, considerando-o bom ou ruim, expressivo ou inexpressivo, à luz de postulados que lhes são externos. O analista sensível convoca ideias, informações, sentimentos e conceitos para formarem uma cadeia dialógica com o poema, amalgamando o domínio cognitivo e o domínio afetivo na sua percepção. Nessa abordagem, emoção e razão se reconciliam de fato, pois não há o recalque da primeira em proveito da segunda. E isto está consoante com a natureza íntima do poema, que é, em essência, o resultado da sintonia, do equilíbrio — não obrigatoriamente perfeito — entre as faculdades da razão e da emoção. De fato, a emoção somente não é capaz de transformar a experiência em texto poético, assim como a razão sozinha também não o integraliza. Enquanto, no processo, a razão é o anteparo do excesso, exercendo o domínio conformador da energia criadora, a emoção é o vetor por onde flui essa mesma energia.
Essa abordagem do poema considera na análise aquilo que o método e a teoria em regra menosprezam e evitam — o saber da subjetividade/emotividade do pesquisador. Mas, paradoxalmente, sem essas prerrogativas, o analista corre o risco de ser um mero aplicador de fórmulas interpretativas e explicativas — um mero operador e conservador de conceitos preestabelecidos — pronto para jogar no lixo o imprevisto, o acidental, o inusitado. E tudo isso constitui a energia vital do poético e da renovação das formas.
A abordagem sensível põe em cena o pesquisador em sua condição humana integral, com seu aparato cultural e sua sensibilidade peculiar. Para ele, o poema é uma caixa de surpresas. Umas se encaixam na dimensão explicativa, outras ele pode apenas sentir e, nesse caso, registrar os achados do seu sentimento. Esta é uma forma mais justa, legítima e coerente de saber o poema, pois a emoção pode ser também uma dimensão privilegiada de pensar e refletir sobre o mundo, a arte e o ser humano.
NOTAS
* Antonie Compagnon levanta vários questionamentos acerca dos excessos da teoria. Cf. COMPAGNON, Antonie. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1999.
** ANDRADE, Carlos Drummond de. Exorcismo. In: ___. Discurso de primavera e algumas sombras. 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979, p. 113.
*** CANDIDO, Antonio. “Mário de Andrade – Poesias - Livraria Martins Editora – São Paulo, 1941”. In: Clima, n. 8, São Paulo, jan. 1942. Apud: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 36, São Paulo, 1994, p. 135. (publicado aí, com a ortografia atualizada).
**** LIMA, Luis Costa. “Quem tem medo de teoria?”. In: __. Dispersa Demanda. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981, p. 193-198.
FONTE
Poesia Sempre, N. 14, ano 13, p.173-177. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2006.