OBJETO DIRETO
1980
– todas as letras e músicas de Belchior, exceto onde indicado
Eu quero meu corpo bem livro do peso inútil da alma
Quero a violência calma de humanamente amar
Eu quero quebrar o quebranto do permitido e do proibido
E nego o que nega os sentidos direito e dom de gozar
A verdade está no vinho “In vino veritas”
Que me faz gauche, anjo torto
Que retempera o meu corpo nos pecados capitais
Pois a pedra no sapato de quem vive em linha reta
É a sentença concreta
Viver e brincar e pensar tanto faz
Substantivo comum um infinito presente
Este, objeto direto, reto, repleto, completo
Presente, infinitamente
NADA COMO VIVER
Nada
Nada como viver
Nada como viver de repente
Nada, nada, nada, nada!
Nada como viver
Nada como viver de repente
Alegria é uma beleza
Com certeza eu viveria
Nessa cor que a moça usa
Além da blusa
Eu quero viver
Amar, prazer, por que não dizer
O palavrão, a palavra, tentação
Amar, prazer, por que não dizer
O palavrão, a palavra, coração
Nada, nada como viver
Nada como viver de repente
Nada, nada, nada, nada
Nada como viver
Comover é comover
Nada como viver de repente
Quando a vida acontecer
Tão bonita mocidade
A palavra independente
O corpo que sente
Sabe fazer
Amar, prazer, por que não dizer
O palavrão, a palavra, sensação
Amar, prazer, por que não dizer
O palavrão, a palavra, sem o senão
Nada
Nada como viver
Nada como viver de repente
Nada, nada, nada nada
Nada como viver
Nada como te ver tão contente
PEÇAS E SINAIS
Nós vamos morar
No mais alto andar
Daquele edifício
Que parece voar
De lá dá pra ver
Um navio que vem vindo
Bombas explodindo em homens
Quase soltos no ar
Em torno ao nosso quarto
Passam helicópteros
E envolvem nossos corpos
Em círculos mortais
A hélice metálica
Risca nosso beijo
E deixa em nossa pele
Peças e sinais
Mas nós não somos bobos
Bomba de hidrogênio
Não vamos permitir
Que a vida acabe assim
Vamos refazer o amor
Um manchão submarino
Bomba H, foguete
Não teremos fim
YPÊ
Contemplo o rio que corre parado
E a dançarina de pedra que evolui
Completamente, sem metas, sentado
Não tenho sido, eu sou, não serei, nem fui
A mente quer ser, mas querendo erra
Pois só sem desejos é que se vive o agora
Vêde o pé do ypê apenasmente flora
Revolucionariamente
Apenso ao pé da serra
Vêde o pé do ypê apenasmente flora
Revolucionariamente
Apenso ao pé da serra
Contemplo o rio que corre parado
E a dançarina de pedra que evolui
Completamente, sem metas, sentado
Não tenho sido, eu sou, não serei, nem fui
A gente quer ter, mas querendo era
Pois só sem desejos é que se vive o agora
Vêde o pé do ypê apenasmente flora
Revolucionariamente
Apenso ao pé da serra
Vêde o pé do ypê apenasmente flora
Revolucionariamente
Apenso ao pé da serra
AGUAPÉ
Capineiro de meu pai
Não me corte os meus cabelos
Minha mãe me penteou
Minha madrasta me enterrou
Pelo figo da figueira que o Passarim beliscou
Companheiro que passas pela estrada
Seguindo
Pelo rumo do sertão
Quando vires
A casa abandonada
Deixe-a em paz dormir
Na solidão
Que vale o ramo do alecrim cheiroso
Que lhe atiras no seio ao passar
Vai espantar o bando, o bando buliçoso.
Das mariposas que lá vão pousar
Esta casa não tem lá fora
A casa não tem lá dentro
Três cadeiras de madeira
Uma sala a mesa ao centro
Esta casa não tem lá fora
A casa não tem lá dentro
Três cadeiras de madeira
Uma sala a mesa ao centro
Rio aberto barco solto
Pau d’arco florindo a porta
Sob o qual ainda há pouco
Eu enterrei a filha morta
Sob o qual ainda há pouco
Eu enterrei a filha morta
Aqui os mortos são bons
Pois não atrapalham nada
Pois não comem o pão dos vivos
Nem ocupam lugar na estrada
Pois não comem o pão dos vivos
Nem ocupam lugar na estrada
Nada
A velha sentada o ruído da renda
A menina sentada roendo a merenda
Nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada.
Aqui não acontece nada não
Nada
Nada
Nada
Nada absolutamente nada
E o aguapé lá na lagoa
Sobre a água nada
E deixa a borda da canoa
Perfumada
É a chaminé à toa
De uma fábrica montada
Sob a água que fabrica
Este ar puro da alvorada
Nada, nada, nada, nada, nada, nada
Aqui não acontece nada não
Nada
Nada, nada, nada, nada, nada, nada
Nada absolutamente nada.
* inclui passagem do poema “A Cruz da Estrada”, do poeta brasileiro Antônio Frederico de Castro Alves
(1847-1871) *
CUIDAR DO HOMEM
Cuidar do homem
Cuidar do homem
Solução, rima, Raimundo
é chegado o fim de tudo
e o mundo pode acabar
Solução, rima, Raimundo
é chegado o fim de tudo
e o mundo pode acabar
Cuidar do homem
Cuidar do homem
De tanto ver, fiquei cego
surdo de tanto escutar
Ainda me sinto gente
mas não posso respirar
Tem veneno em toda terra
Mil fumaças pelo ar
Não tem pássaro nem bicho
E monte líquido de lixo
Se tornou a água do mar
Não tem pássaro nem bicho
E monte líquido de lixo
Se tornou a água do mar
Cuidar do homem
Cuidar do homem
Pra quem pensava que Hiroshima, meu amor
tinha sido exemplar
Há Bomba N, há de Hidrogênio, há Bomba Atômica
Só quem não tem nenhuma simpatia pela raça humana
pode insistir
num desrespeito tão flagrante ao direito de existir
Talvez, se esses caras tivessem uma bela dama
um amor puro
fizessem fama, sobre a cama, como autores do futuro
Por isso, enquanto esses dementes
tomam por amantes bombas e usinas
eu canto, eu danço, eu fumo, eu bebo, eu como, eu gozo
com essas meninas
E se você vier com essa: que eu sou ingênuo, artista louco
digo: eu concordo. Eu pinto, eu bordo
eu vivo muito e ainda acho pouco
Por isso é sempre novo afirmar
Não faça a guerra. Faça o amor
E viva a vida os seus instintos em poder da flor
Por isso é sempre novo afirmar
Não faça a guerra. Faça o amor
E viva a vida os seus instintos em poder da flor
SEIXO ROLANDO
Tudo o que tenho é meu corpo
Sou o que tenho e te dou
Com um corpo como o teu
Não precisas nem de alma
Sente a minha violência
Como uma essência de calma
Anjos, se houvesse anjos
Claro, seriam como tu
No corpo, rosa dos ventos
Tudo é norte, tudo é sul
Se oriente, se ocidente
Toda cor corre pro azul
Não nada como o nada que é o eu
Indescritível nu
Sou um seixo rolado
Na estrada do lado
De lá do sertão
E ser tão humilhado
É sinal de que o diabo
É que amassa o meu pão
Mas meu corpo é discente
E, civilizada a mente
Gosta, cheira, toca, ouve e vê
E, com amor e anarquia
Goza que enrosca e arrepia
Roquerolando em você
Be-bopeando em você
Calipsando em você
Merenguendo em você
Bluesbusando em você
Um boogie-woogie em você
Tango um bolero em você
Chorando em você
JÓIA DE JADE
Trago guardada num quintal dentro de mim
(horto fechado que o povo chama jardim)
A fina flor do alecrim
Cheirosa dama da noite
Rosa de cheiro sem fim
Flora, abomina - deusa encarnada!
Mostra-me a sina: um v de verão
Jazzmin secreto ao sol glorioso
Um mistério gozoso pro meu coração
A face oculta da lua aparece na água do brejo
Vitória régia: a ausência total de desejo
Jóia de jade de onde a luz vem
Lâmina animal - espelho
Que tudo reflete e que nada retém
A paz da verdade preserva mesmo um bichinho
E faz a vontade da erva e do ovo - do ninho
Que as coisas sejam só o que são
Eis o fausto do amor sem defeito
Sujeito objeto de nula intenção
DEPOIS DAS SEIS
Quando a fábrica apitou e o trabalho terminou
Todo mundo se mandou
Sem desejos de voltar
Como o mar não tá pra peixe
Ai, mulata, não negues teu cabelo
E, aproveitando esta deixa
Vem viver, me comer, vem me dar
Renascer, descansar
O sol posto
Enxuga o suor do meu rosto
Que eu não sou cativo por gosto
Estou vivo e berrando da geral
E a moçada é que faz de fato a festa
Em cidade como esta
Onde ser gente é imoral
Conheço a lua
E não conheço o meu quintal
A culpa é tua
Eu cantei todo esse mal
Eu... a andorinha
Contou que, sozinha
Canta, mas não faz verão
Tem boi na linha
É o mesmo trem, a mesma estação
Resumindo
Até logo, eu vou indo
Que é que estou fazendo aqui?
Quero outro jogo
Que este é fogo de engolir
MUCURIPE
(Belchior, Raimundo Fagner)
As velas do Mucuripe
Vão sair para pescar
Vou mandar as minhas mágoas
Pras águas fundas do mar
Hoje à noite namorar
Sem ter medo da saudade
Sem vontade de casar
As velas do Mucuripe
Vão sair para pescar
Vou mandar as minhas mágoas
Pras águas fundas do mar
Hoje à noite namorar
Sem ter medo da saudade
Sem vontade de casar
Calça nova de riscado
Paletó de linho branco
Que até o mês passado
Lá no campo inda era flor
Sob o meu chapéu quebrado
Um sorriso ingênuo e franco
De um rapaz novo encantado
Com vinte anos de amor
Aquela estrela é dela
Vida, vento, vela, leva-me daqui
Aquela estrela é dela
Vida, vento, vela, leva-me daqui
As velas do Mucuripe
Vão sair para pescar
Vou levar as minhas mágoas
Pras águas fundas do mar
Hoje à noite namorar
Sem ter medo da saudade
Sem vontade de casar
Calça nova de riscado
Paletó de linho branco
Que até o mês passado
Lá no campo inda era flor
Sob o meu chapéu quebrado
Um sorriso ingênuo e franco
De um rapaz moço encantado
Com vinte anos de amor
Aquela estrela é dela
Vida, vento, vela, leva-me daqui
Aquela estrela é dela
Vida, vento, vela, leva-me daqui
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