Postagem em destaque

YEAH, HOUSTON, WIR HABEN BÜCHER!

e ai que tenho três livros de autoria publicada que fiz praticamente tudo neles e vou fixar esse post aqui com os três pra download e todos...

sábado, 21 de janeiro de 2017

“(...) devo também dizer que um autor deve escrever apenas sobre as coisas de que gosta e em que acredita. Assim, se você escreve FC e não se interessa por histórias passadas no Brasil, não deve usar cenários brasileiros apenas porque um escritor norte-americano disse que devia fazê-lo. Escreva apenas sobre o que lhe agrada.”
– Orson Scott Card, em entrevista concedida a Roberto de Sousa Causo, editor do Anuário Brasileiro de Ficção Científica.

Connie Williams - MUITO BARULHO POR NADA

MUITO BARULHO POR NADA
* conto de Connie Willis
* título original: Ado
* publicado originalmente na Isaac Asimov Magazine estadunidense de janeiro de 1988 
* tradução de Ronaldo Sérgio de Biasi
* publicado no Brasil na Isaac Asimov Magazine, número 3, de julho de 1990
* texto integral como está na obra publicada em português brasileiro


Na segunda-feira que precedeu o início da primavera, disse a minha turma de literatura inglesa que iríamos estudar Shakespeare. Nesta época do ano, costuma fazer um tempo horroroso no Colorado. Cai toda a neve que os lugares de esquiação haviam rezado para cair em dezembro; a gente perde vários dias de aula e acaba tendo que avançar nas férias de verão. De acordo com a última previsão do tempo, não deveria nevar até sábado, mas com sorte talvez a neve chegasse antes.
A notícia mexeu com os estudantes. Paula pegou o gravador e re-bobinou a fita, para ter certeza de que não perderia uma só palavra. Edwin Sumner fez cara de nojo. Dalila recolheu
os livros e saiu da sala, batendo a porta com tanta força que acordou Rick. Distribuí as fichas de protesto e avisei à turma que deveriam devolvê-las até quarta-feira. Pedi a Sharon para entregar a ficha de Dalila.
— Shakespeare é considerado um dos nossos maiores escritores, possivelmente o maior — disse, para o gravador de Paula. — Na quarta-feira vou falar da vida de Shakespeare e na quinta e na sexta discutiremos sua obra.
Wendy levantou a mão.
— Vamos ler todas as peças de Shakespeare?
Às vezes me pergunto por onde Wendy tem andado nos últimos anos... certamente não nesta escola, possivelmente nem mesmo neste universo.
— Ainda não está decidido o que vamos ler — disse eu. — Amanhã eu e a diretora vamos ter uma reunião.
— É melhor que seja uma das tragédias — disse Edwin, em tom sombrio.
Na hora do almoço, toda a escola já sabia. — Boa sorte — disse Greg Jefferson, o professor de biologia, na sala dos professores. — Hoje terminei o capítulo sobre evolução.
— Já chegamos de novo nesta época do ano? — perguntou Karen Miller, que ensina literatura americana do outro lado do corredor. — Ainda nem comecei a Guerra Civil...
— Já chegamos nesta época do ano — disse eu. — Pode tomar conta da minha turma amanhã, na sua hora de folga? Tenho uma entrevista com Harrows.
— Posso ficar com eles a manhã inteira. Mande-os para minha sala. Vamos estudar “Thanatopsis”. Mais trinta crianças não vai fazer a menor diferença.
— “Thanatopsis”? — repeti, impressionada. — Inteirinho?
— Menos as linhas dez e sessenta e oito. É uma poesia e tanto, você sabe. Não creio que alguém a compreenda o suficiente para protestar. E não vou explicar a ninguém o significado do
título.
— Anime-se — disse Greg. — Talvez a gente tenha uma nevasca.

Na terça-feira, o tempo estava excelente. A máxima prevista era de 15 graus. Quando cheguei à escola, Dalila estava do lado de fora, de shorts e camisa de meia, usando no peito um emblema vermelho da Liga Contra os Adoradores de Satã. Carregava um cartaz que dizia: “Shakespeare é um Demônio em Figura de Homem”. “Shakespeare” e “Demônio” estavam escritos errado.
— Só vamos começar a estudar Shakespeare amanhã — disse para ela. — Hoje não há razão para você não assistir à aula. A Sra. Miller vai discutir “Thanatopsis”.
— Menos as linhas dez e sessenta e oito. Além disso, Bryant era um teísta, que é a mesma coisa que um satanista.
Passou-me a ficha de recusa e um envelope de papel pardo.
— Nossos protestos estão aí dentro. — Baixou a voz. — Que quer dizer mesmo “thanatopsis”?
— É uma palavra índia. Significa “aquela que usa suas convicções religiosas para matar aula e pegar um bronzeado”.
Entrei, peguei o disco sobre Shakespeare na biblioteca e fui para o escritório. A Sra. Harrows já estava lá, com o arquivo de Shakespeare e uma caixa de lenços de papel.
— Você tem que fazer isso? — perguntou, assoando o nariz.
— Enquanto Edwin Summer estiver na minha classe, tenho, sim. A mãe dele é presidente da Força-Tarefa Contra a Falta de Familiaridade com os Clássicos da Literatura.
Acrescentei à pilha a lista de protestos de Dalila e sentei-me diante do computador.
— Pode ser mais fácil do que pensamos — disse ela. — Houve várias queixas desde o ano passado, o que deixa de fora Macbeth, A Tempestade, Sonho de uma Noite de Verão, Conto do Inverno e Ricardo III.
— Dalila tem trabalhado bastante — disse eu.
Carreguei no computador os dados do disco e o programa para suprimir partes do texto.
— Não me lembro de nenhum ato de bruxaria em Ricardo III. Ela espirrou e pegou outro lenço de papel. — Não há nenhum. A acusação foi de calúnia. Assinada por um ta-tataraneto do rei. Afirma que não há provas de que Ricardo III tenha assassinado os pequenos príncipes. Não faz
diferença. De qualquer maneira, a Real Sociedade para a Restauração do Divino Direito dos Reis conseguiu uma liminar contra todas as peças históricas. Qual é a previsão do tempo?
— A pior possível — disse eu. — Quente e ensolarado. — Chamei o programa e apaguei Henrique IV, Partes I e II, e o resto das peças históricas. — A Megera Domada?
— Liga de Defesa dos Direitos da Mulher. Tire também As Alegres Comadres de Windsor, Romeu e Julieta e Trabalhos de Amor Perdidos.
— Otelo? Deixe para lá. Já sei por quê. O Mercador de Veneza? Liga Antidifamação?
— Não. Ordem dos Advogados. E também a Associação dos Agentes Funerários. Eles não gostaram da forma como a palavra “esquife” foi usada no terceiro ato — explicou a Sra. Harrows, assoando o nariz.

Levamos o primeiro e o segundo tempos para rever todas as peças e a maior parte do terceiro tempo para terminar os sonetos.
— Tenho uma aula no quarto tempo — disse eu. — Vamos ter que terminar isto depois do almoço.
— Sobrou alguma coisa? — perguntou a Sra. Harrows.
— Como Gostais e Hamlet — respondi. — Nossa, como eles foram se esquecer de Hamlet?
— Tem certeza de que Como Gostais não está na lista? — perguntou a Sra. Harrows, folheando os papéis. — Lembro-me de que alguém apresentou uma queixa contra a peça... 
— Provavelmente foi a União das Mães contra os Travestis — disse eu. — Afinal, Rosalind se veste de homem no segundo ato.
— Não, aqui está. Partido Verde. “Atitudes destrutivas em relação ao ambiente.” — Olhou para mim. — Que atitudes destrutivas?
— Orlando grava o nome de Rosalind na casca de uma
árvore — respondi.
Recostei-me na cadeira e olhei pela janela. O sol ainda estava à mostra, infelizmente.
— Acho que vamos ter que nos contentar com Hamlet. Será o suficiente para deixar feliz a mãe de Edwin.
— Ainda temos que examinar o texto linha por linha — disse a Sra. Harrows. — Estou ficando com dor de garganta.
Pedi a Karen para me substituir na aula da tarde. Era um curso de literatura para o segundo ano e estávamos estudando Beatrix Potter. Tudo que tinha a fazer era distribuir uma ficha a respeito de Squirrel Nutkin. Saí para almoçar. Estava fazendo tanto calor que tive que tirar o casaco. Os Estudantes de Cristo marchavam em frente à escola, com cartazes onde estava escrito: “Shakespeare era um Humanista Secular.”
Dalila estava deitada nos degraus da entrada principal, com o corpo besuntado de óleo. Acenou languidamente para mim com o cartaz “Shakespeare é um Demônio em Figura de Homem.”
— “Vós cometestes um grande pecado” — recitou. — “Risca-me, peço-te, do livro que escreveste.” Êxodo, Capítulo 32, Versículo 30.
— Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, 13:3 — repliquei. — “E ainda que entregue meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me aproveitará.”
— Liguei para o médico — disse a Sra. Harrows.
Estava de pé, olhando pela janela para o sol abrasador.
— Ele acha que posso estar com pneumonia. Sentei-me em frente ao computador e chamei o Hamlet.
— Procure ver as coisas pelo lado positivo. Pelo menos, temos os programas de computador. Antigamente, tínhamos que fazer tudo isso à mão.
Ela se sentou atrás da pilha.
— Como vamos fazer isso? Por parágrafo ou por linha?
— É melhor fazermos por linha.
— Linha um. “Quem está aí?”. Movimento Nacional Contra as Frases Interrogativas.
— Vamos fazer por parágrafo — disse eu.
— Muito bem. É melhor nos livrarmos primeiro dos casos mais importantes. A Comissão para Prevenção de Envenenamentos acha que “a descrição do envenenamento do pai de Hamlet pode induzir pessoas desequilibradas a cometerem um crime semelhante”. Citam um caso que ocorreu em Nova Jersey, onde um rapaz de dezesseis anos despejou Diabo Verde no ouvido do pai depois de ler a peça. Espere um momento. Preciso de um lenço de papel. A Frente de Liberação da Mulher é contra as frases “Fragilidade, teu nome é mulher”, “Oh, mulher perniciosa”, toda a fala que começa com “Que pedaço de trabalho”, e a rainha.
— A rainha inteira?
A Sra. Harrows consultou suas anotações.
— Isso mesmo. Todas as falas, citações e alusões à rainha. Apalpou o maxilar, primeiro de um lado, depois do outro.
— Acho que meus gânglios estão inchados. Isso é sintoma de pneumonia?
Greg Jefferson entrou com uma sacola de supermercado.
— Achei que vocês iriam precisar de rações de combate. Como estão indo as coisas?
— Perdemos a rainha — disse eu. — Que mais?
— O Conselho Nacional de Cutelaria protesta contra a descrição de espadas como armas mortais. “As espadas não matam pessoas. São as pessoas que matam pessoas.” A Câmara de Comércio de Copenhague não concorda com a frase “Há algo de podre no reino da Dinamarca.” A União dos Estudantes Contra o Suicídio, a Federação Internacional de Floristas e a Cruz Vermelha pedem que a morte de Ofélia seja suprimida.
Greg estava arrumando na mesa os vidros de xarope para a tosse e comprimidos de aspirina. Passou-me um vidro de valium.
— A Federação Internacional de Floristas? — repetiu.
— Ofélia caiu na água quando estava colhendo flores — expliquei. — Como está o tempo lá fora?
— Parece verão. Dalila está usando um refletor de alumínio para bronzear por igual.
— Aba — disse a Sra. Harrows.
— O quê? — perguntou Greg.
— A ABA, Associação de Banhistas Anônimos, quer ver de fora a frase “Passei tempo demais no sol” — disse a Sra. Harrows, bebendo um gole de xarope.
Quando chegou a hora da saída, ainda estávamos na metade. A Irmandade das Freiras objetava à frase “Ide para um convento”, a Associação dos Gordos Convictos exigia que toda a passagem que começava com “Oh, se esta carne sólida, tão sólida se desfizesse” fosse suprimida, e não havíamos nem chegado ainda à lista de Dalila, que tinha oito páginas.
— Qual a peça que vamos estudar? — perguntou-me Wendy, na saída.
— Hamlet — respondi.
— Hamlet? Não é aquela peça em que o tio do mocinho mata o rei e se casa com a rainha?
— Não é mais — respondi.
Dalila estava à minha espera do lado de fora.
— “Muitos, reunindo os seus livros, os queimaram diante
de todos” — recitou. — Atos, 19:19.
— Não repareis em minha tez escura; foi o sol que me queimou — disse eu.

Na quarta-feira, o tempo estava nublado, mas ainda fazia calor. Os Veteranos por uma América Limpa e os Sentinelas da Sedução Subliminar haviam organizado um piquenique no jardim da escola. Dalila estava usando uma frente-única. 
— Aquilo que a senhora disse ontem sobre a tez escura... de onde tirou?
— Da Bíblia — respondi. — Cântico dos Cânticos. Capítulo um, versículo seis.
— Oh! — exclamou, aliviada. — Isso não está mais na Bíblia. Nós tiramos.
A Sra. Harrows tinha deixado um recado para mim. Tinha ido ao médico. Eu deveria procurá-la no terceiro tempo.
— Vamos começar hoje? — perguntou Wendy. — Se vocês todos se lembraram de trazer as fichas. A aula de hoje será sobre a vida de Shakespeare — disse eu. — Você por acaso ouviu a previsão do tempo?
— Ouvi. Tempo bom, claro e firme.
Pedi a ela para recolher as fichas de protesto. No ano anterior, Jezebel, irmã de Dalila, havia me acusado por escrito de “tentar ensinar promiscuidade, controle de natalidade e aborto dizendo que Anne Hathaway ficou grávida antes de se casar”. Havia cometido erros de ortografia ao escrever “promiscuidade”, “aborto”, “grávida” e “antes”.
Ninguém tinha se esquecido de levar as fichas. Guardei-as para mais tarde enviá-las à biblioteca e comecei a aula.
— Shakespeare...
Ouvi Paula ligar o gravador.
— William Shakespeare nasceu no dia 23 de abril de 1564, em Stratford-on-Avon.
Rick, que não havia levantado a mão o ano inteiro ou mesmo dado qualquer indicação de que estava vivo, levantou a mão.
— A senhora pretende dedicar um tempo equivalente à teoria baconiana? — perguntou. — Bacon não nasceu em 23 de abril de 1564, e sim em 22 de janeiro de 1561.

Quando chegou o terceiro tempo, a Sra. Harrows ainda não havia voltado do médico, de modo que comecei a examina examinar sozinha a lista de Dalila. Ela objetava a quarenta e três referências a espíritos, fantasmas e assuntos correlatos, vinte e uma palavras obscenas (“obscenas” estava escrito errado) e setenta e oito outras que achava que talvez fossem obscenas, como “canhenho” e “gonzos”.
 Quando eu estava acabando de ler a lista, a Sra. Harrows entrou e colocou a maleta em cima da mesa.
— Provocados por tensão! — exclamou. — Estou com pneumonia e ele diz que meus sintomas são provocados por tensão! 
— Ainda está nublado lá fora?
— Lá fora está fazendo vinte e dois graus. Onde estamos? — Associação dos Agentes Funerários. De novo “A morte é apresentada como universal e inevitável”. — Olhei para a ficha. — Alguma coisa está errada...
A Sra. Harrows tirou o papel da minha mão.
— Este é um protesto contra “Thanatopsis”. A semana passada foi o congresso anual dos agentes funerários e eles aproveitaram para preencher todas as fichas de uma vez. Ainda não tive tempo de separá-las. — Remexeu na pilha que estava sobre a mesa. — Aqui está a ficha que escreveram a respeito do Hamlet. “Uma imagem negativa dos funcionários responsáveis
pela inumação...”
— Os coveiros.
— “...e a descrição de um sepultamento que não obedece às normas de segurança. A cena não mostra nem um caixão hermeticamente fechado nem uma câmara mortuária.”
Trabalhamos até as cinco da tarde. A Sociedade para o Progresso da Filosofia achava que a frase “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que supõe a nossa vã filosofia” era ofensiva à sua profissão. O Sindicato dos Atores acusava Hamlet de contratar atores não sindicalizados e a Liga de Defesa das Cortinas objetava ao fato de Polônio ter sido morto com um golpe de espada quando estava escondido atrás de uma cortina. “O autor insinua que as cortinas são perigosas”, tinham escrito na ficha. “As cortinas não matam pessoas. São as pessoas que matam pessoas.”
A Sra. Harrows colocou a ficha em cima da pilha e bebeu
um gole de xarope.
— É isso aí. Mais alguma coisa?
— Acho que sim — disse eu, entrando com o comando reformatar e examinando a tela. — Sim, falta alguma coisa. Que tal “Um salgueiro reflete na ribeira cristalina sua copa acinzentada”?
— Essa “ribeira” vai ter que sair — disse a Sra. Harrows.

Na quinta-feira, cheguei à escola às sete e meia da manhã para imprimir trinta cópias de Hamlet para os meus alunos. O céu estava nublado e fazia frio. Dalila usava luvas e um casaco de lã. O rosto estava vermelho como um tomate e o nariz começava a descascar.
— “Gosta Javé de holocaustos e sacrifícios como da obediência à voz de Javé?” — perguntei. — Primeiro Livro de Samuel, 15:22 — acrescentei, dando-lhe um tapinha no ombro.
— Ai! — exclamou Dalila.

Distribuí as cópias do Hamlet e pedi que Wendy e Rick lessem as linhas de Hamlet e Horácio.
— “Que vento forte! O frio é insuportável” — leu Wendy.
— Onde estamos? — perguntou Rick.
Mostrei-lhe o lugar.
— Ah. “E o ar cortante e agitado.”
— “Que horas são?” — leu Wendy.
— “Penso que falta pouco para as doze”.
Wendy olhou nas costas do papel.
— É só isso? — perguntou. — Hamlet é só isso? Pensei que o tio matasse o pai dele e o fantasma contasse que a mãe tinha culpa no cartório e ele dissesse “ser ou não ser” e Ofélia se matasse e tudo o mais! — Revirou o papel nas mãos. — Esta não pode ser a peça completa!
— E melhor que não seja — disse Dalila, entrando na sala
com seu cartaz na mão. — Espero que todos os fantasmas estejam de fora. E também todos os canhenhos!
— Quer um pouco de Solarcaine, Dalila? — perguntei.
— Estou precisando é de uma caneta Pilot — disse, em tom ofendido.
Peguei uma caneta para ela na gaveta da escrivaninha. Saiu da sala, andando meio dura, como se o movimento lhe causasse dor. — Não pode tirar pedaços da peça só porque alguém não
gosta deles — disse Wendy. — A peça acaba ficando sem sentido. Aposto que se Shakespeare estivesse aqui, não concordaria com o que a senhora...
— Isso se Shakespeare foi mesmo o autor — interveio Rick. — Porque se você tomar a primeira letra da quarta linha do texto e a segunda, quarta, quinta e sexta letras da segunda
linha, terá a palavra “porco”, que obviamente é um nome de código para Bacon.
— Está nevando! — disse a Sra. Harrows pelo intercomunicador. Todos correram para as janelas.
— As aulas serão encerradas às 9:30.
Olhei para o relógio. Eram 9 e 28.
— A Organização dos Pais Superprotetores nos enviou o seguinte documento: “Está nevando, e como o serviço de meteorologia prevê que vai continuar a nevar, e como a neve pode resultar em ruas escorregadias, má visibilidade, acidentes de ônibus, queimaduras de frio e avalanches, exigimos que a escola seja fechada hoje e amanhã, para que nossos filhos não corram perigo.” Os ônibus vão sair às 9:35. Tenham um bom feriado!
— Tudo por causa de um pouquinho de neve? — queixou- se Wendy. —- Agora não vamos mais aprender Shakespeare!
Dalila estava no corredor, ajoelhada ao lado do seu cartaz, riscando a palavra “Homem”.
— O Movimento das Feministas por uma Língua Imparcial esteve aqui — declarou, aborrecida. — Trouxeram um mandado de segurança.
Escreveu “Pessoa” acima de “Homem”.
— Um mandado de segurança! Dá para acreditar? Quero dizer: que fim levou a liberdade de expressão?
— Você escreveu “Pessoa” errado — observei.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

OLAVO BILAC: “CANÇÃO”

“Dá-me as pétalas de rosa 
Dessa boca pequenina: 
Vem com teu riso, formosa! 
Vem com teu beijo, divina! 

Transforma num paraíso 
O inferno do meu desejo... 
Formosa, vem com teu riso! 
Divina, vem com teu beijo! 

Oh! tu, que tornas radiosa 
Minh′alma, que a dor domina, 
Só com teu riso, formosa, 
Só com teu beijo, divina! 

Tenho frio, e não diviso 
Luz na treva em que me vejo: 
Dá-me o clarão do teu riso! 
Dá-me o fogo do teu beijo!”
– Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (1865-1918), “Canção”

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

A CANTADA MAIS CANALHA DE TODOS OS TEMPOS

cantada mais canalha de todos os tempos, um fora 99% garantido, use por sua conta e risco

– Oi.
– Oi.
– Sabe quem sou eu?
– Não.
– Sou aquele presente que você pediu quando caiu a estrela cadente.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

“Sobre Mann, Theodor Adorno escreveu: ‘Se eu precisasse dizer o que me parece mais característico nele, teria que mencionar o sobressalto repentino que se podia aguardar nas ocasiões em que ele retornava de um momento de devaneio. Seus olhos eram azuis ou azuis-cinzentos, mas aqueles momentos em que ele se refazia, fulgiam negros e brasileiros, como se algo ardesse em latência e esperasse o momento de incendiar-se; como se ele houvesse reunido algo concreto de que agora lançava mão para experimentar suas forças. O ritmo com que sentia a vida era o oposto do burguês: nada de continuidade, mas alternação entre extremos, entre latência e iluminação’.
Em face desses olhos negros e brasileiros, vale resgatar o contrato imaginário de Thomas Mann com a terra de origem de sua mãe. O escritor é filho de Julia da Silva Bruhns, nascida em 1851 perto de Parati (RJ). Após perder a mãe, Senhorinha Maria da Silva, a pequena Julia emigrou em 1858 para Lübeck com seu pai alemão, Johann Ludwig Bruhns. Foi criada em um pensionato e desposou aos 17 anos um comerciante da cidade, o pai de Thomas.
A origem exótica da mãe tem presença discreta, mas significativa, no imaginário do autor. Muito importante na abordagem do assunto é seu encontro pessoal com Sérgio Buarque de Holanda, em dezembro de 1929, Berlim. ‘Acho impossível dispensar o prazer de conversar com um brasileiro’, afirmou Mann na época, explicando a Sérgio Buarque porque ele, e não outro, teria sido escolhido para falar com o recém-laureado pelo prêmio Nobel de literatura.
A grande obra inacabada Confissões do impostor Felix Krull anunciou a viagem de um protagonista de Thomas Mann à América do Sul. Nem autor nem personagem puderam vir. Mas Mann e sua obra integram nossa cena literária, em boas traduções e edições disponíveis. O público brasileiro de hoje pode ter muito a contribuir no projeto literário auto-irônico de desmascaramento das contradições burguesas e imaginação de uma sociedade cosmopolita, internacionalizada sobre o signo da justiça possível diante do homem humano. Demasiadamente humano.”
– Paulo Soethe, “Origem brasileira”. IN: Panorama da Literatura Alemã, 2004.
“Afirmo que falta a nossa poesia um centro, como a mitologia foi para os antigos, e tudo de essencial em que a arte poética moderna fica a dever à antiga reside nestas palavras: nós não temos uma mitologia. Acrescento, entretanto, que estamos próximos de possuir uma, ou melhor: é chegado o momento em que devemos colaborar seriamente para produzí-la.
Pois ela virá através do caminho inverso de outrora, que por toda parte surgiu como a primeira floração da fantasia juvenil, diretamente unida e formada com o mais vivo e mais próximo do mundo dos sentidos. A nova mitologia deverá, ao contrário, ser elaborada a partir do mais profundo do espirito; terá de ser a mais artificial de todas as obras de arte, pois deve abarcar todo o resto, um novo leito e recipiente para a velha e eterna fonte primordial da poesia; ao mesmo tempo, o poema infinito, que em si oculta o embrião de todos os outros poemas.”
– Karl Friedrich Schlegel (1772-1829), “Discurso sobre a Mitologia”. Tradução de Victor-Pierre Stirnimann.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

NOVA FASE

NOVA FASE!
NOVA VIDA!
NOVOS DESAFIOS!
QUE VENHA O MAGISTERIUM SCHOLARIUM!
“O sonho dos românticos é superar a consciência da impossibilidade de uma compreensão correta, transparente, de um outro – pois alteridade implica justamente isso, uma dimensão de inacessível – através de um salto para muito além do obstáculo, tentando, por meio da linguagem, compreendê-lo melhor do que ele compreende a si mesmo, reconstruindo ao avesso as trilhas por ele percorridas. A ironia da episteme romântica é precisamente esta. Não se pode alcançar o outro, mas sua emulação deveria, quem sabe, levar nosso próprio movimento a ultrapassá-lo.”
– Victor-Pierre Stirnimann, Schlegel, carícias de um martelo, 1989.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

“A cultura depende de como a definimos. Se separarmos cultura de civilização, todos os povos, até os mais primitivos, têm cultura, porque a condição do homem é cultural. E tudo o que se seguiu: até a Teoria da Relatividade de Einstein, desde a faísca que o homem obteve do atrito de duas pedras. A evolução desse processo aquisitivo, que eu não diria que é desenvolvimentista, tem sido uma marcha lenta e, muitas vezes, extremamente cruel. A consciência do que significa cultura, o reconhecimento de valores e o que eleva o ser humano acima de sua condição animal, sem dúvida, constitui um dado que existe. A preocupação de ordem ética é outro dado e é primordial. De qualquer maneira não podemos colocar o plano do universo em que se move o homem de hoje no mesmo plano que existia em qualquer outro período. Primeiro, porque as outras épocas desapareceram, e não dispomos de outros elementos de comparação. Segundo, porque suas produções foram incorporadas e transferidas pelas gerações subsequentes, haja vista o atual mundo digital que é quase o nosso habitat. Além disso, nós não dispomos de referenciais absolutos. Dizem que foi assim… Foi de fato? Tomar os relatos históricos como pura objetividade já está demonstrado que não é uma boa medida, porque a objetividade histórica durante séculos se concentrou na formalização de certos aspectos, somente isso. E seria somente isso? A moderna história das mentalidades está pondo em xeque essa visão e destacando outros aspectos. Eles existiam, mas se dizia que a história das marginalidades na vida em sociedade era apenas o relato de fatos e eventos que não tinham importância. Veja, a tecnologia existe desde os primeiros passos do homem na Terra. Não é só a invenção do foguete. Cortar uma lasca de pedra já é tecnologia. A consciência e o avanço desse conhecimento e dos valores que ele implica são coisas fundamentais. Nesse sentido, os instrumentos para isso são de máxima importância para a vida humana. Se a pólis, no sentido geral, não só como cidade no sentido estrito, mas como vida em sociedade, é uma realidade inegável, ela implica necessariamente ethos. Ethos não é apenas moral, é política. A consciência em relação a isso é produto de desenvolvimento para o qual os diferentes instrumentos da cultura são essenciais. E não apenas o livro. Para não mencionar o papel da ciência, da filosofia, dos saberes e das diferentes artesanias na ampliação das práticas e das ferramentas cognitivas, pensemos nas artes: dança, música, pintura, escultura, teatro etc., todas elas, isoladamente ou em conjunto, interagem e afetam visceralmente nossas experiências e vivências e o horizonte de abrangência de nossa mente.”
- Jacó Guinsburg, em entrevista para a Revista Pesquisa Fapesp em novembro de 2013

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

“Quando Novalis dividiu as traduções entre gramaticais, modificadoras e míticas, estava implícito que apenas as pertencentes à última categoria seriam satisfatórias; quando Schlegel lamentou-se do que é perdido em todas as traduções costumeiras, falava da mesma coisa. Uma tradução gramatical exige pouco além de talento mímico e inclinação filológica; a modificadora, conquanto perigosa, releva ao menos o ímpeto de uma natureza que reage à influência e ao chamado de outro espírito – não deixa, afinal, de exigir uma certa fantasia. Traduções míticas, por sua vez – demandam algum gênio – há que compreendê-las à luz do enfoque radical conferido por Schlegel ao conceito de crítica: a tarefa de determinar o valor de uma obra pela reconstrução de se engendramento e de sua estrutura, comparando-a a seu próprio ideal.”
– Victor-Pierre Stirnimann, Schlegel, carícias de um martelo, 1989.