CANÇÃO PARA LAURA
“Lamento, não o sofrimento
Me lembro do teu falar
Que tem a força da água
Batendo na beira-mar
No coração de quem ama
Sempre tem uma esperança
Que faz os olhos falar”
– Arraial do Pavulagem, “Recado”, Gente da Nossa Terra, 1995.
UM COPO DE PLÁSTICO CHEIO DE CAFÉ AINDA QUENTE E UM CIGARRO ACESO NA MÃO ESQUERDA SOBRE O JOELHO DIREITO ENQUANTO A DIREITA APOIAVA O QUEIXO. Lembrou-se quando era ela treinando e seu pai a observando, mas não àquela distância e degraus acima n’arquibancada. Tinha o cuidado para que as cinzas caíssem no chão e não sob o casaco, a calça e as botas, compradas antes da viagem. Com o polegar da mão do café, ajeitou os cabelos atrás das orelhas antes de mais um gole. Procurava não pensar em nada além dos uchikomi que assistia impassivamente. Fora do ginásio chovia, começando a noite.
– Eles também querem ser astronautas como a senhora – o homem que sentou ao seu lado disse, sem virar-se para ela, que deu mais um trago, soltando a fumaça pelo nariz também sem virar-se para ele. As duas mãos segurando o copo de café, cotovelos nos joelhos. – Eles começaram assim que já podiam andar e aqui estamos – ele continuou, fingindo não vê-la sorrir discretamente. – Vovô disse que eles são mais aplicados como ele, a senhora e eu não fomos. – Ela franziu as sobrancelhas, tomando mais um gole. Virou-se para ele, com o indicador em riste. Trouxe o dedo de volta ao lembrar-se que tinha a idade da neta quando o pai a trouxe para este mesmo ginásio, a este mesmíssimo dojô, para que gastasse melhor sua energia de infante. Até o liceu, pouquíssimas coisas tiravam seus pés do dojô. Mais um trago. – A senhora ainda pretende voltar?
A vida até aquela noite passou rente a seus olhos negros com a mesmíssima intensidade que a expirada de nicotina saiu de suas narinas. Infância. Adolescência. Gravidez. Academia. Mestrado. A convocação para o Saussure por estar pesquisando algo que era estreitamente do interesse deles, sendo recrutada pessoalmente pelo Nobel de Matemática, Fenrisúlfr Hübschmann, lingüísta como ela – ou seja, a proposta irrecusável. E lá foi ela, não contando que seria diretamente responsável pela decodificação do algoritmo que permitia a tradução e compreensão plena da mensagem enviada por eles; e menos ainda em fazer parte de uma missão tripulada, um ano e meio depois, ao planeta deles. Possivelmente sem retorno. Estranhava lembrar da última vez que vira os pais e o filho, mas não d’última vez que adentrara aquele dojô e cumprimentava seu sensei (cuja neta agora era a sensei em exercício, ela lembra que a dita ainda era um bebê quando partiu em missão). Sim, era um’angústia silenciosa e imcompartilhável. Também tentar lembrar d’última vez que fechara o nó do obi já totalmente escurecido. Seria no mesmo dia? Mais um trago e o cigarro quase no fim, tinha outros e o isqueiro em algum bolso do casaco. Olhou para o homem e viu bem fundo dentro de seus olhos, lembrando de quando o tivera em braços da primeira vez, ainda chorando para todo o quarto escutar. “O que foi?”, ele perguntou.
“Nascido em um dojô”, ela lembrou-se de cada palavra, “enrolado em um judô-gi”. Virou-se à frente e mais um gole no café. Lembrou-se de quase desistir de entrar naquela nave, lembrou de que não querer sair da cama àquela manhã. Não foi à única. “Estar sentada em uma poltrona de um veículo interestelar e ver o céu azul enegrecer te dá uma perspectiva muito diferente da vida que levou até então”, escrevera. Apagou o cigarro com a bota enquanto tirava o maço do bolso. Entregou o copo de café ao homem enquanto tirava um cigarro com a boca e procurava o isqueiro em um dos bolsos, sem tirar os olhos dos netos. Acendeu e balançou a cabeça afirmativamente, pegando o copo de café.
– Dobra mais essa perna pra encaixar esse ashi-guruma! – levantou-se gritando, derrubando o café, o que a fez praguejar contra si. Pegou outro copo e o abriu, tomando um bom gole. – O café da sua esposa é ótimo – ela virou-se a ele. – Denize, certo? – ele confirmou. – Catarina, levanta a cabeça! – ela gritou a plenos pulmões novamente – Ajeita esse Kumi-Kata – a neta desejou por um momento ela não estar lá. – Porra é essa, Constantino? ‘Cê nunca vai acertar esse de-ashi-harai virando assim! – o homem estava admirado dela memorizar facilmente os nomes dos netos mas não de sua esposa. No momento seguinte, a criança executou perfeitamente a projeção. – É disso que eu ‘tô falando, porra! Catarina, entra primeiro o ouchi-gari e depois o uki-goshi! – os outros pais e mães no ginásio já estavam realmente incomodados com a gritaria que chegava a ressoar no local. A menina forçou um uki-goshi, quase sendo derrubada, mas o sassae-tsuri-komi-ashi que usara como contra-projeção funcionara – ID RECTE ,CATARINA! – a lingüista vibrou em latim. A neta não entendeu, mas sentiu que era um elogio pela entonação da avó, abrindo um grande sorriso. Mais um gole seguido de mais um trago. – Você tem filhos ótimos – ela estava empolgada, seus olhos brilhavam como sóis.
– Mãe? – ele perguntou.
– Felipe? – ela respondeu. Ele ficou em silêncio, pensando que talvez não fosse o melhor momento de perguntar o que o afligia desde quando ela havia voltado. Ainda era uma criança quando ela havia saído do planeta. Estava mais velho do que ela, que – tal como o resto da equipe – estava só três anos e alguns meses mais velha do que quando foram. Ele ainda estava procurando coragem para dizer a ela que os filhos eram do segundo casamento e que a ex-esposa e a atual não se davam nada bem. Esta última ainda não engolira completamente que a sogra havia voltado de... A anterior nem sonhava com isso, e Felipe não estava nem um pouco disposta a informá-la disso – Filho? – ela perguntou, tomando um gole.
– Eu ia perguntar...
– Ia perguntar qual minha opinião de você ter separado, casado de novo e a Catarina e o Constantino serem seus filhos com a Denize e não com a Lenina? – ela o cortou após um trago, ele arregalou os olhos e franziu a testa o máximo que era possível. – É a sua vida, filho. Nem sempre tudo sai como queremos. Olha o que aconteceu comigo – ela sorriu, levantando o copo como se em saudação. – Não te vi crescer (e me odeio por isso), mas você me deu netos lindos – olhou para as crianças no dojô – e eu prometo não repetir essa mancada – tomou um gole e ofereceu o copo a ele, que não entendeu. – Bebe – ela disse –, é a parte que você aceita minha promessa.
– Como a senhora sabe de tudo isso? – ele perguntou já com o copo na mão e tomando o gole. Ela sorriu. “Ora”, ela deu uma tragada antes de fazer uma face deneuveana para dizer que, como integrante do Projeto Saussure, tinha acesso a “documentos muito legais, como...” – Meu arquivo pessoal feito a partir de dados que o governo federal tem? – a pergunta a fez abrir um grande sorriso enquanto pegava seu grande copo e fazer uma cara de “é, é isso ai” e tomar um bom gole enquanto Felipe estava bastante admirado. “Ei”, ela disse com os olhos nos netos, “mães precisam saber”, ela sorriu para ele. “O sorriso dela não mudou nada”, ele pensou, lembrando de quando era uma criança e ela sorria mais radiante que o sol quando o via. “Mas não era isso que você ia perguntar”, ela disse.
Mais um trago. Mais um gole e os olhos nele. Sobrancelhas em riste. Olhos nos filhos, olhos nos netos.
– O que a senhora viu lá? – ele perguntou. – Na viagem? – as perguntas foram sem rodeios. Ela fechou a cara. Bateu com as pontas do anular e do mindinho esquerdos na testa, olhos baixos, um trago, um longo trago. Levantou a cabeça para expirar pelo nariz e ver os netos.
– Eu responderia se não tivesse um satélite me monitorando e gravando tudo o que digo, faço e escrevo – mais um trago, baixou os olhos. – Os militares não são os caras mais legais do mundo pra compartilhar segredos, sabe? – sorriso sem dentes. A velha cara de “você sabe como é”. – Você não ia acreditar se eu te disser onde eles colocam escutas. Você precisa ouvir quando dá interferência e dá pra ouvir a conversa do pessoal que grava o que eu falo – o filho parecia não acreditar no que estava ouvindo, achou que ela estava enlouquecendo completamente. Ela segurou o riso. – Lívia? Mariantônia (eu adoro esse nome!)? Elizabeth? Fernanda? Vocês estão aí, meninas? Eu sei que sim. O bebê da Fernanda já nasceu? Tomara que sim. – “A viagem a deixou pirada de vez”, Felipe pensou. Ela deu mais um trago no café.
Sim, ela havia realmente enlouquecido. Não pelo que viu quando chegou ao planeta deles; pela forma que a sociedade havia se desenvolvido; como foram obrigados a criar tecnologia para recriar seus recursos naturais; pela ciência e tecnologia ultra-avançada que não era nociva ao meio ambiente; por descobrir o quanto a ciência e a tecnologia terráqueas ditas “avançadas” eram não somente primitivas e o quão estavam sendo executadas de maneira errônea; como conseguiram ser triunfantes frente a três povos invasores que desejavam conquistar o planeta pela posição estratégica e como utilizaram os avanços científico-tecnológicos destes para iniciar uma nova era de renascimento de seu planeta, que fora exaurido tanto pela superpopulação quanto pelas guerras internas e contra os forasteiros. Não, não por isso.
Com exceção de Hübschmann, Clarissa Peyremaure Tadeu Henrique Banhos Monegaglia (que se correspondiam com os pais e os conjugues), ninguém da missão tripulada até lá tinha contato com seus parentes no planeta Terra. O que definitivamente não quis dizer que eles não tinham notícia do que aqui ocorria durante a incursão.
Seu pai havia falecido e o filho deixado justamente a tios e primos que ela não era afeita. O aborto de uma amiga. O parto de outra que a acabou matando a posteriori por erro médico. O aborto natural da primeira esposa do filho que ele e a dita nunca saberiam pois o médico também trabalhava para o Projeto Saussure – e não seria ela que poderia sequer pensar em contar-lhes.
Durante a missão, a equipe teve a “sorte” de ver como alguns dos invasores capturados ainda vivos (por animação suspensa) eram torturados ainda na época da guerra – uma prática considerada de “boas-vindas” por seus anfitriões. Nenhum dos filmes de terror vistos por eles nem a pior das torturas a prisioneiros vistas por Monegaglia a vivo ou em vídeo chegava nem perto do que viram naquela tarde. Resultado: uma semana sem dormir e praticamente uma sem dormir, à base do equivalente deles a café e deixando o estoque de cigarros praticamente no fim. Souberam qual a verdadeira origem do universo e qual o verdadeiro papel dos humanos nele. Da invasão do planeta e da transformação deste em um posto avançado para que fosse feito tanto um porto interestelar neste quanto base de operações para uma guerra da qual a humanidade não se safaria. E, enfim, da confirmação sobre o que um certo escritor havia relatado sobre certos deuses espaciais ancestrais que quase os fez ser executados na principal praça do planeta-sede com transmissão ao vivo para todos os planetas-colônia pelo simples dizer em voz alta dos “nomes profanos e proibidos que jamais devem ser repetidos porque Eles sempre ouvem e as profecias não dizem quando voltarão”.
E ela foi a que voltou menos traumatizada. Teodoro, Lynn e Ronalda se suicidaram menos de um ano e meio do retorno. Hübschmann pediu desligamento total do projeto quando soube da morte da esposa e das irmãs. Peyremaure reabriu a churrascaria do pai, onde praticamente todo o pessoal do Saussure e do Kant que estava em Fortaleza voltou a se reunir desde quando o Velho Ferndinand ainda era vivo, além de umas e outras peças da ABIN e do serviço secreto das Forças Armadas que, segundo lendas, iam realizar suas “transações por fora” devido o lugar não ter escutas. Monegaglia sumiu no mundo e teve seu dossiê arquivado com secreto como muitos “ultra-” como prefixo. A última vez que Bacellar foi visto, estava mendigando em um vilarejo próximo à Moróvia, capital da Libéria. Matsushita se tornou uma das professoras mais promitentes da UFES, mas só consegue dar aula travada de drogas cujos nomes são verdadeiros travas-línguas, todavia não é afastada por suas conexões com o Saussure. Veneziani assumiu a fazenda dos pais no Mato Grosso do Sul e conversa sobre qualquer coisa que não seja aquela viagem. Frieiri – ao total contrário de Revoredo, Monegaglia e Matsushita – enlouqueceu assumidamente e fica pela estação secreta de onde o foguete que os levou até eles decolou, pregando o que viu para o vento e os pássaros, uma vez que os militares concluíram que seria imprudente o deixar perambulando mundo afora, considerando o tanto de malucos que poderiam seguí-lo tomando suas palavras como verdade (mal saberiam...). Somente Dantas e Gurjão continuam no projeto, o primeiro como engenheiro e o segundo como consultor científico de como os terráqueos podem assimilar a ciência e tecnologia dos conquistadores .
À ela, todos os remédios para dormir possíveis com o que tiver no estoque: uísque, vodka, cachaça, rum, conhaque... Isso quando consegue dormir (às vezes, alguns dos utilizados por Matsushita são de muito bom tom). Os... gritos... que ouviu... Ressoavam em volume máximo dentro de sua cabeça. O que descobriu sobre o universo e a humanidade... Fechou os olhos e balançou forte a cabeça para os lados querendo espantar tudo aquilo, tomando uma boa dose de café para que tudo fosse junto. A chuva estava enfraquecendo. Levantou a manga do casaco para ver o relógio de pulso, ainda faltava mais uma hora para o fim do treino. Lembrou de quando voltou, dos ataques de desespero, dos gritos e das lágrimas, do tratamento intensivo para recuperação e de passar quase um ano para ver o filho novamente até se recuperar. Foi numa das primeiras semanas de volta que Teodoro tirou a arma de um guarda e meteu um tiro na cabeça – nem quis saber que desculpa deram para a família da amiga. Na primeira semana fora, Lynn deu de contra com um trem a mais de 250 por hora – com a família dentro do carro.
Chegou a pensar em todas as maneiras que podia se matar quando saísse da reabilitação, de forma que não encontrassem o corpo (porém sempre tinha calafrios ao lembrar-se de Ronalda e como ele simplesmente desapareceu e foi dado como morto, já que nem os militares nem o serviço secreto de quatro países encontraram o cadáver (Hübschmann e Gurjão ironizaram dizendo que ele havia encontrado uma forma de voltar até eles, por isso não foi encontrado)). Não queria o filho e os netos visitando sua lápide em algum cemitério por ai (e ai lembrava de novo do companheiro de viagem). Mas então viu os netos pela primeira vez que não por fotos...
E o filho.
Os cabelos dele estavam quase brancos, rugas pelo rosto, mãos e olhos cansados. Ela não se despediu porque poderia desistir ouvindo os apelos dele. Queria chorar mas todas as lágrimas haviam ido embora durante os crises pós-viagem. “Felipe”, ela disse, abrindo os braços, indo na direção dele. “Mãe”, a recebeu. Mais alto que ela, era como se estivesse abraçando seu pai quando era uma criança. O abraço mais demorado de sua vida. O abraçou por todos os anos que não estiveram juntos, como pedido de desculpas por não tê-lo visto crescer, sofrer, amadurecer e viver. E também por Fátima, por Patrik, por Durval, por Lana, por Regina, por Alexandra, pela turma da universidade, pelos primos e primas, amigos e amigas e, por fim, pelo pessoal do judô, pelo pai e pela mãe. E por Tatiane e Elizandra, por não estar com elas quando mais precisaram... E então sobre os joelhos, o rosto já rubro e os olhos castanhos inchados. Sem conseguir dizer palavra.
– Eu ‘tô aqui, mãe... – seu rosto como o dela. A segurou o mais forte que pôde para que não caísse, para que não esvaísse de seus braços e então nunca mais... – Eu ‘tô aqui...
Abraçar os netos foi como abraçar o filho quando ele voltava da escola ou quando ela de uma viagem, só que duas vezes de uma vez – e quase quebrá-lo ao meio. “Mãe!”, ela sorria ao escutar e o abraçava mais forte. Passaram uma semana falando sobre tudo menos o acontecido na viagem. Até aquela noite, quando ele enfim decidiu tocar no assunto, cerca de um mês depois. Quantas vezes ela dormiu no sofá ou na cadeira da varanda e ele a colocava na cama que a esperava de volta há tanto tempo? Quantas vezes ela não o colocou na cama depois de um dia correndo e pulando? (Ela não esqueceu de Denize, só ficou com a língua queimando para dizer a ela tudo o que vira e lera em seu dossiê e do que ela e sua família haviam aprontado. Todavia não quis estragar o casamento do filho dizendo o que sabia.)
Fim de treino. Hora de voltar. Ela apagou o último cigarro com a ponta da bota antes de bater no ombro dele com o dorso da mão. “Vamos”, disse, “eu dirijo hoje”, desceu a escada com o copo de café na mão. Ele levantou sorrindo “porra, mãe...” para descer. Não tinha a energia e a flexibilidade dela, e acreditava firmemente que ela voltaria ao judô antes do fim do semestre tamanha sua empolgação em sempre acompanhar os treinos dos netos. Ela os abraçou, pegando-os pelas mãos, até que a puxaram para o dojô. “Nãããão, eu não quero tirar as botas”, se lamuriava sorrindo, “já tive um trabalhão pra colocar”. Era cena. Cumprimentou o dojô, foi a até a sensei para fazer o mesmo (“os bons velhos hábitos”, pensou o filho, com as botas em uma mão, seguras pelos dedos) antes de “mostrar algumas coisas de judô” aos netos até a hora de irem realmente embora. E foi mesmo dirigindo até em casa. Ela se divertia com o quanto ele se assustava e se admirava com a rapidez que ela se acostumava com a tecnologia da época. “Tudo para não enlouquecer como o Frieiri”, dizia todos os dias depois de levantar e tomar o primeiro banho do dia, “tudo para não enlouquecer como o Frieiri”.
– Mãe? – ele estava à porta e a ouviu e levantou a cabeça, estava deitada na cama com as crianças. – Ize e eu vamos a um supermercado 24 horas. A senhora quer alguma coisa?
– Traga duas garrafas de Jack’s, dois Cuervo’s e duas Finlândia’s – ela respondeu sem pensar. – E mais cigarros: Malboro vermelho e Hollywood vermelho. Um maço de cada – terminou. O homem suspirou. “Ok, mãe”, não gostava que a mãe bebesse e fumasse tanto, mas... – Felipe? – ele virou as costas e olhou para ela. – Eu te amo – ela disse –, obrigado pelo dia.
Ele sorriu e foi até à esposa.
A TV iluminava o quarto. Um programa sobre grupos folclóricos brasileiros. Assunto de seu interesse. Ela queria fumar mas não o podia fazer perto dos netos. “Que seja”, pensou. O programa da noite seria sobre o sexagésimo aniversário de um grupo paraense chamado Arraial do Pavulagem. Eis que recordou de quando fora a Florianópolis e conheceu alguns conterrâneos de tal grupo, ela gostava de como eles falavam e riam. O sono dos netos infiltrou-se tenramente no corpo dela, que não ofereceu resistência.
Adormeceu.
[Momento final]
Felipe e Denize estão no carro, ele pronto para acionar a ignição, quando o telefone toca.
– Alô? – ele atende.
– Felipe Revoredo? – voz de moça, ele olha para a mulher. – Não responda. Essa é uma ligação de uma linha não-identificável e não-rastreável. Meu nome é Mariantônia Vergueiro, do serviço de inteligência das Forças Armadas. Pode pedir, por favor, pra professora Laura parar de falar com a gente quando a estivermos monitorando? Não pega bem pra gente, sabe? Pois é, é isso.
O telefone fica mudo. Ele fica completamente sem reação. Busca na lista de chamadas recebidas e não há registro do último número. O telefone toca novamente.
– Ah – a mesmíssima voz –, e diz pra ela que o bebê da Fernanda já nasceu e o nome dele é Leibniz. O pai dele é físico, sabe como é. Tchau.
O telefone fica mudo outra vez e outra vez não há o último número nas chamadas recebidas.
Ele sai do carro com o telefone na mão. Olha para a casa do avô. Olha para o céu.
“Quem diria... ”
:: para a professora Laura Christina Revoredo Rocha [Campo Grande-MS] ::
:: 29 de abril de 2014 e 14 de janeiro de 2015 ::
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