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e ai que tenho três livros de autoria publicada que fiz praticamente tudo neles e vou fixar esse post aqui com os três pra download e todos...

domingo, 15 de março de 2015

ANNA (SANTA) SOPHIA

ANNA (SANTA) SOPHIA 

“Aldous Huxley disse que um intelectual era uma pessoa que tinha descoberto algo mais interessante do que o sexo. Um homem civilizado, pode-se dizer, é alguém que descobriu algo mais interessante do que o combate.”
– John Keegan, A guerra e os antropólogos. Tradução de Pedro Maia Soares.


ROSTOS ALVOS ENTÃO EM ESCARLATE. Ranger de dentes. Espinhas curvas mas cabeças não abaixo. Nenhum pé a frente. Mãos aos uwagis, dedos com esparadrapos. Muros sem brechas. Cabelos cobrindo os olhos. Não mais olhos castanhos e sim pedras de carvão acesas novamente. Passadas minimamente acertadas. Às vezes, pé na canela ou uma puxada para baixo para não-falta por falta de combatividade. Mãos nos shitabakis eram shidô. Salvo sussurros entre os juízes e algumas pessoas falando entre si ou aos celulares, nunca uma semifinal de jogos brasileiros  fora tão silenciosa. Pelo mesmo estado, na mesma pesagem. Campo de batalha: a boa e velha e amada Belém. Quem diria que seria em casa? Mas quando elas lutavam...
Elas que tinham muito em comum mas não se pertenciam dentro do dojô ao serem escolhidas para uchi komi, que dirá em tatames de competição? As Annas que nem mesmo se cumprimentavam além da saudação-padrão. Me acredite, eu estava lá algumas vezes. Histórias diferentes e criações quase iguais. Cabe aqui dizer que me encantei por ambas por estatura e, por que não dizer e lembrar?, pelos modos nada sutis. Mulheres de ideal e atitude me abrem o interesse – e logo elas... Devo dizer que cai para trás e meu coração quase para fora da boca ao saber que elas também judocas, mas que não cantavam aos quatro ventos. E, uma vez que passei muito tempo afastado do esporte (festas, bandas, trabalho, essas coisas), não estava a par de que eram rivais dentro das quatro linhas. E até onde bem soube, somente nelas, uma vez que o contato era somente em treinos e competições (certo, e então perguntarás como sei que tinham muito em comum? Pesquisas por fora ajudam após as ver naquela tarde chuvosa da última quinta de outubro).
Faz quantos anos desde aquela tarde? Fora por algumas fotos, faz anos que não as vejo pessoalmente. Até onde sei, a loira agora é juíza e a morena é alguma coisa na Aeronáutica e coisa e tals. É, tivemos nossas diferenças e desentendimentos e cada um pro seu lado. “E a gente foi simplesmente parando de se falar...”, um pernambucano (Pedro, seu Fianna safado, estou falando com você) me disse uma vez. Tem o seu sentido, já aconteceu tantas vezes que... É, não foi a primeira vez e nem a última. Às vezes, isso dói. Mas digamos que já me acostumei a isso a ponto de esquecer, seja no dia seguinte, seja no momento seguinte. Somado à outras situações relacionadas à amizade (que não posso chamar exatamente de “confortáveis”), ou você aprende a viver com as pessoas entrando e saindo da sua vida ou você não vive. Algumas vezes, memórias são as melhores companhias. Outras, as únicas que você tem.
Cada uma já tinha um waza-ari . Então uma a seu lado, arrumar cabelos e judô-gi, Magalhães de branco (se pudesse, lutaria de preto, tal como alguns muitos jiu-jitsokas) e Medrado de azul (ela odiava lutar de azul). Era estranho vê-las sem óculos (sim, estou sorrindo). Vocês tinham que ver os outros das Letras lá, abismados e boquiabertos com a disciplina e determinação das duas. Eu mesmo disse “quem diria...” quando soube e já meio que previra tal reação do pessoal ao ver tal presepada quando vi os nomes delas na lista da seleção feminina. E, antes de retornar minha atenção à luta, Medrado levara um koka  por não ter tirado um pé a tempo – ainda consigo ouvir seus pais xingando os juízes a plenos pulmões. Nós, da UFPA, obviamente, quase derrubamos o ginásio da Escola Superior de Educação Física (“território inimigo”, como alguns disseram, muitos rimos) em comemoração, apesar das duas serem do mesmo time. Vocês realmente deviam ver quando começamos a gritar “Ih, foi mal, a minha é Federal!” (os pais da Sophia não sabiam onde colocar a cara ouvindo aquilo, mas acho que o pai dela ‘tava gostando devido um sorriso no canto da boca), nossos pariceiros de Letras da UEPA  quiseram a morte, mas... “amigos, amigos, universidades à parte...” Eu sei que vocês entendem.
Não deu tempo de comemorar muito. Sophia entrou de mau jeito em uma projeção que os juízes entenderam como shidô. E, malditos sejam eles e todas suas gerações a posteriori!, marcaram como shidô! E eis as duas novamente no mesmo páreo. Se tu achas que juiz de futebol é xingado em final de campeonato, devia estar lá naquele dia pra ver o que é zueira. Tiveram que pedir para nos acalmarmos e pararmos de gritar. Pessoal da UEPA não deixou por menos as encarnações de momentos antes: “cadê tua moral? Eu sou da Estadual!” E as meninas querendo se enterrar no tatame, tamanha a vergonha da bagunça na arquibancada. Anarquia somente freada quando o árbitro disse que a luta continuaria só e somente se a pândega parasse. Os pais delas suspiraram de alívio. E todo mundo “pooooooorra......”
Lembro de cada uma delas como se fosse ontem. Em sorrisos, em voz, em presença. A meu ver e por mais que elas me contradigam, cada uma maravilhosamente adorável de sua maneira, mesmo que, às vezes, tomada igualmente por ímpetos de melancolia ou jovialidade. Lembro de suas vozes, de seus quereres e sonhos díspares, do silêncio segurando as lágrimas devido à minha presença – “nem fudendo que vou chorar na tua frente”. Não foi como eu queria, com nenhuma delas, mas... Como eu disse... “Algumas vezes, memórias são as melhores companhias. Outras, as únicas que você tem”. E afinal... O que eu tenho delas? O que me resta delas? O que resta em mim nelas? As melhores lembranças, os melhores sorrisos, os melhores abraços – e eu queria ter tido os melhores beijos, porém porém porém (eu pareço estar frustrado, não? me acreditem, já aprendi a viver muito bem com as minhas frustrações). E como elas lembram de mim depois de todos estes anos passados? Se ainda lembram de mim, diga-se logo. Mas eu sei que alguém vai ver os nomes delas neste texto – que não pode ser exatamente categorizado como conto ou quiçá crônica – e, muito certamente, mostrar a elas. E então elas recordarão. O quê? Como? E então a chuva daquela tarde. E um trovão, talvez um enviado diretamente por mestre Thor.
E eis as duas novamente em pé. Dez segundos para o fim.
Hajime! 



:: 11 de março de 2015 ::

sábado, 14 de março de 2015

PORQUE AGORA INÊS É MORTA - conto completo

PORQUE AGORA INÊS É MORTA

“Eu sei que ela nunca mais apareceu
Na minha vida, na minha mente novamente”
– Cidade Negra, “À Sombra da Maldade”, Sobre Todas as Forças, 1994.


ESPERAVA A MAIS DE UMA HORA NA FRENTE DO ESCRITÓRIO DA TRANSPORTADORA, NÃO FUMAVA ANTES MAS AGORA COM UM CIGARRO NA MÃO. Chuva, muita chuva. Quanto tempo que não chovia daquele jeito? Não lembrava, queria poder lembrar. Sapatos e calças molhadas, a capa de chuva preta, presente dela enquanto ainda namorados. Alguns carregadores e até o encarregado pediram para ele ficar onde não molhasse, não foram ouvidos, “ah, foda-se”. Dava espaço para os caminhões, picapes e carros menores passarem. E começando a anoitecer não-lentamente, ainda a chuva e agora alguns trovões. Quanto tempo da última vez das mãos dela nas dele, e aquele sorrisos como as nuvens e os olhos como céu? Quanto tempo do queixo dela a seu ombro e o nariz ao ouvido até à lateral de seu queixo? E ela acordando a seu lado? Quanto tempo?
Ele veio lá longe, já no sobretudo e a capa de chuva prestes a ser aberta, era impassível à chuva, como se ela não estivesse lá ou se fosse afeito à ela de tanto tanto tempo. Soubera que ela havia lhe arrumado o emprego e ele do Norte do país até aqui, e então tomá-la para si. Todos já falando, comentando, apontando para ele. Não dormia mais, não pensava mais, não comia mais, que dirá sair da casa dos pais para onde voltara depois dela o deixar sem dizer palavra – faltava ao trabalho, ia somente para fazer número, olhando para a tela do computador ainda desligado. Ele o festeiro e mulherengo e recém-formado em Letras na Federal do Pará e então aqui. Ela uma vez dele, que ainda queria como dele e, principalmente, com ele. À direção dele em passos curtos, “esse puto anda rápido”. O viu parar e um momento estático, a sua mão à arma à cintura debaixo do casaco, tremia, ele virou, estava iluminado e podia ver a parte do rosto não coberta pelo gorro do sobretudo e pela barba, os olhos negros de filme de terror, inquietos e enlouquecidos, um passo à frente. Tremia tanto que não conseguiu tirar a arma, um passo à frente. “Ele vai me matar”, um passo à frente. O coração queria sair pela boca, um passo à frente. Se arrependeu por estar lá, um passo à frente. Queria poder dar um passo ou dois para trás, um passo à frente. Frente à frente.
Miguel, eu creio.
O dito balançou a cabeça afirmativamente.
Pensei que você não ia aparecer. Eu te pago um café. Vamos.
Miguel estranhou vê-lo cumprimentar muitos no local e então sentarem. Fora do sobretudo, vira que era menor que ele, em estatura e largura, podia quebrá-lo ao meio se não visse as fotos das competições de judô e medalhas subsequentes, repensou. todavia olhou a careca reluzente e barba de alguns fios já brancos já a ponto de trançada e pensou que judô seria a última coisa que usaria contra ele caso levantasse a mão. “Por favor”, ele pediu para que sentasse, antes que o fizesse e soltasse a gravata e abrisse o primeiro botão da camisa, “o lugar é ótimo, o único defeito é não poder fumar aqui dentro”, a moça bem magra levou os dois cafés e deixou o pote de açúcar entre os dois. O dito queria poder tirar o caso mas veriam o revólver e o caos estaria instalado, viu o barbudo escrever algo em um bilhete e lhe entregar, “coloque a arma dentro do casaco e coloque o mesmo na cadeira do seu lado”, ficou constrangido e envergonhado pela falta de tato e teve certeza de que não teria chance contra ele – casaco sobre a cadeira, revólver no bolso.
Veio falar sobre a Paulina, não?
Miguel em silêncio.
Olha, eu sei que tu estás puto, eu mesmo estaria, ela me explicou a situação quando eu cheguei, toda a situação. Pelo menos a parte dela, primeiro gole no café, está ótimo para esta chuva.
Acho que tu ainda não tens gravidade da situação, ela ainda é minha esposa e tu não sabes o que estão falando de mim por ai...
Tsc, ei. Eu sei, eu não sou surdo, eu não sabia como te encontrar mas sabia que tu ias dar as caras mais cedo ou mais tarde depois que eu aparecesse e tome o seu café. Eu sei que tu ainda a amas, ainda gosta muito dela, quer que tudo volte como era antes, mas... Rapá, vai por mim, ‘tá foda, isso não acontecer, nunca volta a ser como era antes, ela vai ter os dois pés atrás contigo pra tudo, mesmo que tu faças tudo certo. Te falo como voz da experiência.
Tu não sabes... O que a minha família fala. Um homem na casa dela...
Por pouco tempo.
... De uma mulher sozinha...
Não é por culpa dela.
... Casada com um filho de uma família tradicional...
(Altenor riu) E riu alto! Cotovelos à mesa, punho fechado à palma d’outra mão, de frente ao sul-rio-grandense que podia sentir o sorriso demoníaco por baixo da barba que considerava sinal de falta de higiene e respeito pessoal e com terceiros.
Rapá, se fosse pra tá comendo a tua mulher, eu já tava andando de mãos dadas com ela por ai e tirando fotos a rodo e postando por ai na internet e mostrando pros meus pares lá de Ananindeua e Belém. ‘Tá vendo essa morena aqui comigo? Ela ‘tá fazendo o mestrado na porra da Federal do Mato Grosso e vim aqui presse outro pólo de fim de mundo de país que a gente vive juntar o máximo de grana pra ir ficar com ela. Ela. É. A. Mulher. Da. Minha. Vida. Entende isso? Eu sei que entende, tu fizestes a mesma coisa pela Ana Paulina. Não foi? A única vez que encostei nela foi quando ela me abraçou quando nos vimos na rodoviária e daí nunca mais. Eu sequer a olho nos olhos.
É mentira!

É, ele veio.
E então?
Conversamos. Tentamos conversar.
Hum.
E a reação dele não foi das melhores.
Eu te falei que ele não ia acreditar nessa balela, não?
Porque eu simplesmente não fico admirado?
Não vão demorar para achar a arma pelas impressões digitais.
Uma arma? Ele ‘tava com uma arma?
Eu não fico admirado, olha...
Porra...
E agora...?
Ei.
Espera... Ele apontou a arma procê?
Não, a arma caiu do casaco e atingiu um senhor.
Jesus!
E agora?
Agora fudeu muito valendo pro lado dele, principalmente se o velho tiver morrido. Ai nada nesse mundo ajuda o cara, ainda mais sem porte de arma.

Ele foi preso cerca de três dias depois, o senhor morrera no caminho ao hospital. Impressões digitais na coronha, número da arma raspado, origem desconhecida, mas já estava sendo procurada por ter sido usada em dois assaltos com tiro e mais uma execução. Como previsto, carregadores, motoristas, encarregados e tantos outros o reconheceram, fora preso em um bar por civis à paisana atrás de outro suspeito que fora visto lá pela última vez. “Não devia ser assim”, ela repetia todas as noites antes de dormir, quando dormia, cabeça ao travesseiro, escuridão, o mesmo filme passando rente a seus olhos anis. “Altenor?”, o braço moreno sobre o tórax alvo até a mão alcançar o pulso.
Sim, Annie?
E agora?
Agora tu continuas.
Não era pra ser assim.
Nunca é como pensamos.
Annie?
Oi?
Eu gosto de como seus olhos azuis brilham quando tu falas.
ela sorriu




:: para Graziela Inês Jacoby, de Santa Maria do Rio Grande do Sul ::

:: 13 de março de 2015 ::